O filme de Akira Kurosawa me impressionou, quando o assisti pela primeira vez nos anos de aprendizado sobre o cinema, e ainda desperta minha admiração. Eu o revi recentemente. Não envelheceu. Verdadeira obra-prima, atravessa os tempos como uma das mais memoráveis criações cinematográficas sobre relações de poder.
Baseando-se essencialmente, mas não exclusivamente, no clássico de Shakespeare, Macabeth, de enredo conhecido, Kurosawa recria a trama na realidade do Japão medieval, no período Sengoku Jidai, conhecido como época dos “Estados Beligerantes”, uma das fases mais conturbadas da história do Japão, entre a metade do século XV e final do século XVI.
Yoshiteru Miki e Taketori Washizu são comandantes do primeiro e segundo castelo de um reino local. Depois de terem derrotado as forças inimigas, são chamados por seu senhor ao Castelo das Teias de Aranha, sede do reino. No caminho, surpreendidos pela chuva e nevoeiro, se perdem nos meandros da floresta e deparam-se com a estranha figura – feiticeiro, ser sobrenatural, vidente, ou simples miragem, não se sabe – que prediz o futuro de ambos. Segundo ele, Washizu em breve assumirá o trono e o filho de MiKi o sucederá. Parte da profecia se cumpre na recepção dada pelo Chefe de Estado, que promove a ambos. De volta para casa, Washizu comenta a predição com a esposa, lady Asaji. Ela acredita na profecia e encoraja o marido, tempos depois, a eliminar o rei que passa a noite em seu castelo.
O assassinato desencadeia uma violenta guerra entre aqueles que disputam o poder, colocando em campos opostos antigos aliados. A culpa leva o usurpador a constantes delírios e a novos assassinatos. Abalado, recorre ao vidente de quem ouve que sua segurança apenas será ameaçada se as árvores da floresta caminharem em direção ao castelo. O breve período de calmaria, no entanto, dá lugar ao pesadelo, ao vislumbrar a copa dos pinheiros em movimento, sobressaindo-se na intensa bruma. O desfecho é trágico para aquele que manchou o trono de sangue.
Mas o que distingue a obra de Kurosawa daquelas de outros diretores que filmaram o mesmo tema? Ele não faz mera transposição da peça escrita por Skakespeare para a realidade japonesa, por saber não ser possível. Os sortilégios não se manejam da mesma forma nas duas sociedades, ele afirma. Mescla o essencial do enredo da peça de teatro com elementos culturais e históricos da era mencionada, despojando-o da linguagem poética do dramaturgo bardo. Ao contrário deste, não vislumbra uma lição edificante para quem sobreviveu à tragédia que levou a um banho de sangue entre beligerantes. No lugar de resposta para o desvario, prefere interrogar se o repertório de ambição, traição e morticínio são inerentes à condição humana, pois o ciclo de violência nunca termina.
Do ponto de vista da linguagem cinematográfica, ousa ainda mais, ao combinar e contrastar cenas de luta e intenso movimento, acompanhadas à distância pela câmera, com cenas de teatro Nô, que acontecem no interior do castelo, demarcadas por movimentos e gestos estilizados, de emoção contida e vozes moduladas, entremeadas de sons cortantes, que prenunciam e agouram o inesperado. O olhar direto e o tom angustiante de Washizu é contraposto pelo olhar de soslaio da esposa, a máscara que oculta emoções, as frases curtas e diretas que revelam o designo e conduzem o destino, até que ela se perca nos meandros da própria loucura. A cena em que ela tenta se livrar do sangue, lavando obsessivamente as mãos maculadas, é de uma das mais belas e comoventes da história do cinema.
Kurosawa consegue com sua estética e visão de mundo nos levar para além do universo de Shakespeare, é isso que torna seu filme brilhante, para além do tempo histórico que retratou.
Ficha técnica
Título: Trono Manchado de Sangue
Ano: 1957
Direção: Akira Kurosawa
Roteiro: Hideo Oguni, Shinobu Hashimoto, Ryûzô Kikushima, Akira Kurosawa (baseado na obra de William Shakespeare).
Elenco: Toshirô Mifune, Isuzu Yamada, Takashi Shimura, Akira Kubo, Hiroshi Tachikawa, Minoru Chiaki, Takamaru Sasaki, Gen Shimizu, Kokuten Kôdô, Kichijirô Ueda
Duração: 110 min.
Onde ver: Site AdoroCinema