Circe. Relê o texto de Petrônio. “Não há uma palavra que possa apreender sua beleza. Na verdade, qualquer coisa que eu disser será pouco. Seus cabelos naturalmente ondulados se derramavam sobre seus ombros, a fronte pequenina, que fazia as raízes dos cabelos voltarem-se para trás, as sobrancelhas que iam quase até as maçãs do rosto e quase se misturavam do outro lado, no encontro das vistas, os olhos mais brilhantes que estrelas resplandecentes em noites sem luar, as narinas ressaltadas, e a boca, pequenina, qual Praxíteles acreditou tê-la Diana. Sem falar do queixo, da nuca, das mãos, da candura dos pés colocados numa grácil rede de ouro: tudo teria ofuscado o mármore de Paros. Assim, então, foi que eu, enamorado, pude esquecer Dóris.”
Silvia. A luz da manhã ensolarada ilumina em viés sua imagem sob o arco de pedra do pátio interno da antiga instituição de ensino. Ressalta as linhas do pescoço delgado, penetra as dobras da túnica de linho claro, bordada em delicadas ramagens de flores silvestres, para de repente entre a linha divisória dos seios arredondados, e fica à espreita, querendo decifrar seu anseio. Os cabelos naturalmente ondulados derramam-se sobre os ombros, protegendo-os. O nariz pequeno, levemente arrebitado, sobre lábios carnudos, rosa-vermelhados, desejam e convidam em silêncio, o mais despretensioso e inquietante. Os olhos, brilhantes, ressaltados por sobrancelhas arqueadas, interrogam, investigam. Os pés colocados em graciosas sandalhas de couro entrelaçado deixam à mostra calcanhares macios, dedos esculpidos em mármore de Paros. Enamorado, ainda não esqueceu o casal de amigos e amantes-guerrilheiros que ainda habitam e perturbam seu coração.
Depara-se com ela por acaso na sala de aula. Ela havia permanecido ali durante o intervalo. Não está maquiada e sua beleza, rara e resplandecente, é nublada pela melancolia que empalidece seu rosto e embaça seu olhar. Aproxima-se. Não consegue disfarçar o embaraço de ter sido surpreendida no momento de solidão e tristeza. Tira o lenço de cambraia de linho da bolsa e enxuga as sobras de lágrimas. Permanece em silêncio por alguns instantes. Ele toca de leve seu ombro e se afasta. A imagem dela, desprotegida e frágil como uma gazela desgarrada, o comove. Invadirá suas noites de insônia.
Encontram-se numa pizzaria no bairro nobre em que ela mora. Ela o convidara, depois de semanas de entreolhares e gestos contidos para dissimular a atração cada vez mais forte. Conta-lhe detalhes de sua vida para além do frisson nas passarelas onde brilha como modelo de um dos mais renomados nomes da alta costura paulistana. É casada, tem dois filhos pequenos e vem sofrendo constantes agressões físicas do marido. Buscou na volta à universidade uma rota de fuga para o desamparo e a vida sem sentido. “Você tornou-se meu refúgio na solidão que me cerca. Suas aulas me despertam para o conhecimento do outro, do diferente, o universo de sinais trocados sobre o que tem sentido na vida. A viagem que nos leva por culturas tão diversas me fez olhar para dentro de mim mesma. Custei a admitir que não me apaixonara pela Antropologia, mas por você.” Surpreso, acaricia sua mão, aperta-a devagar e intensamente, transmitindo o desejo que o consome.
Desfaz o laço de tiras de couro acima do tornozelo, acaricia seus dedos e beija seus pés. Toca suavemente seu rosto, os lábios sedentos da boca pequena, a fronte delicada, a nuca descoberta pela cabeleira ondulada sobre o travesseiro, o ombro desprotegido, os seios redondos no peito arfante, o ventre esculpido em mármore e as curvas do corpo helênico. Não existe saciedade para a fome que os devora.
Anos depois, as lembranças voltam à memória com uma paz perturbadora. Perdera a força avassaladora do desejo dos primeiros anos de maturidade. A volúpia deu lugar a lembranças ternas, como fotografias de cores esmaecidas. O desejo, reacendido momentaneamente, esmorece em seguida. A beleza está em outro lugar e o prazer em outros sentidos.