Chegam à sede da fazenda no começo da tarde. Foram convidados por Dona Rosário, que conhece Leonardo desde criança. Acompanhou com interesse sua trajetória e se afeiçoou a seus primeiros filhos, a quem se refere como os gêmeos. “Entra meu filho”, diz ao recebê-los na ampla varanda do casarão antigo, de meados do século dezenove. “Como estão crescidos os meninos”, diz abrindo os braços. Correm em sua direção e são acolhidos pelo caloroso abraço.
Olha para as folhas do pé de parreira que se espalha pelo beiral de madeira rendilhada e deixa-se levar pelas lembranças. Ainda não tinha dez anos quando costumava chegar à propriedade puxando pela corda o cavalo com balaios de verdura no lombo. O fazendeiro, já falecido, pedia para ele subir as escadas do alpendre. Oferecia um cacho de uva, enquanto descansava por alguns minutos no banco rústico. Vez por outra, sua mulher o levava até a ampla cozinha, onde lhe oferecia pão de queijo, recém tirado do forno à lenha. Aparentemente, pouco mudou desde essa época.
“Preparei um café para vocês, vem! ”, diz puxando um dos gêmeos pela mão. A cozinha tem o cheiro gostoso de eras passadas. Réstias de alho e de cebola penduradas na parede, linguiças e toucinho presos nos caibros acima do imenso fogão, ao lado de pequenos feixes de ervas aromáticas. A mesa está posta com a fartura de quitandas: broa de milho, sequilho de coco, bolachinhas, biscoito, a deliciosa rosca trançada e bolo de fubá. Passou a ser recebido assim, depois de ter se tornado sócio proprietário da firma, quando vinha a negócio comprar feijão mulatinho da safra seca, queijo curado, toucinho e linguiça defumados, farinha de mandioca. O pequeno caminhão Ford costumava voltar abarrotado.
Entra na cozinha, não fazendo barulho com as passadas desengonçadas de pés grandes e descalços. Coloca o chapéu sobre o peito largo, onde começam a despontar fios de cabelo branco. A camisa de mangas largas é alva, de doer a vista. O macacão de algodão deixa as canelas peludas de fora e do bolso de trás pende o lenço que usa para enxugar a baba. Os olhos brilham ao reconhecer Leonardo. Abre a boca grande de lábios grossos e emite sons truncados: he, he, he … Leonardo levanta-se do banco e o abraça. “Oi Seu Di, firme e forte? ”, pergunta dando palmadas nas costas da criança grande. “Trouxe um presente! ” Entrega-lhe a sacola cheia de carretéis. Seu Di dá uma risada rouca e o abraça novamente. “He, he, he…”
Pega sua mão e o puxa pelos corredores até seu quarto. São seguidos pela mãe e os dois meninos. Os janelões de madeira azul escuro estão abertos, deixando a luz do dia entrar em profusão pelas vidraças suspensas, iluminando o ambiente. A cama de solteiro está coberta por uma colcha multicolorida de retalhos. Sob uma das janelas, o caixote de madeira está quase que cheio de carretéis. Despeja ali o conteúdo da sacola e olha com satisfação para Leonardo, a quem puxa novamente pela mão para mostrar uma coisa. Entra no quartinho anexo, onde guarda os brinquedos. Volta com duas peças: uma gamela com carretéis presos por pregos, seguindo o traçado de um caracol; na prancha retangular de madeira envelhecida as pequenas peças roliças dão a forma a animais, entre eles o burrinho predileto.
As paredes do quarto estão cobertas por folhas com desenhos coloridos. Um deles chama a atenção. A figura de perfil esverdeado parece conversar com o burro cinzento de olhos grandes e mansos. Na parte azulada de sua cara, está a figura da mãe, tirando leite. No pé da colina, o roceiro caminha com a foice no ombro.
Observa da janela o balão vermelho, que acaba de soltar, sendo levado pela brisa. Acompanha, com o olhar, os movimentos do empregado consertando o telhado do paiol. Aproveita o vazio dos corredores para sair furtivamente em direção ao pátio. Sobe a escada que o empregado deixou encostada na parede do paiol e senta-se no telhado. Observa a paisagem ao redor. Como tudo é diferente daqui de cima! Imagina subir até a nuvem parada sobre o telhado da casa. Talvez a alcance com um pulo. Ao vê-lo caminhar claudicante sobre as telhas, sua mãe entra em desespero. Grita e faz sinais para ficar parado e sentar-se. O empregado sobe apressado a escada, senta-se ao seu lado por alguns instantes, pega sua mão e o ajuda a descer. Abraça a mãe. “He, he, he …”
A noite cai, cobrindo tudo de mistério. Ainda não se acostumou com silêncio dos sonos. Procura o pai pelos corredores. Fica horas sentado no banco do alpendre esperando que abre a porteira e venha abraçá-lo. Observa a copa das árvores separadas da escuridão por uma fresta de luz. Volta para o quarto, coloca a sacolinha de carretéis no ombro, amarra três balões coloridos no suspensório. Corre desajeitado pelo pátio, ajeita a escada na parede da casa. Sobe. As mãos grandes tocam as telhas em busca de apoio. Sobe mais um pouco, engatinha até chegar à cumeeira. Sente o vento tocando o rosto. Observa a bolinha prateada e as chamas das velas piscando acima de sua cabeça. Lembra-se do balão subindo. Tenta manter o equilíbrio enquanto caminha sobre as telhas. Ergue o braço que segura os balões e se lança no espaço.
É levado pela brisa cada vez mais para cima. Vê paiol, o terreiro, a casa grande. Gira para cada vez mais longe, acompanhando o movimento das luzinhas cintilantes. O burrinho de estimação passa flutuando por ele, seguido pelo peixe vermelho do aquário. Sobe cada vez mais alto pela vastidão escura, até chegar à moita de algodão doce enfeitada de bandeirolas. Senta-se por alguns instantes. Não tem tempo para contemplar a aldeia colorida sob seus pés. É tragado pelo redemoinho das estrelas.
Imagem – Eu e a Aldeia, Marc Chagall, 1911