Semanas do 21 de fevereiro a 6 de março/2022
Internacional
No clássico A Era dos Extremos, o historiador inglês Eric Hobsbawn analisa a crise do sistema capitalista internacional que levou à I Guerra Mundial, estertor de uma época que deu origem a uma nova ordem mundial. Para ele, o Século XX inaugura-se, de fato, neste interregno e termina, setenta anos depois, com o colapso da União Soviética.
A referência é oportuna para tentar compreender a crise no Leste Europeu como expressão do redesenho da ordem mundial nas duas primeiras décadas do Século XXI, com os Estados Unidos perdendo a condição de potência hegemônica, a China tornando-se a potência econômica rival, em aliança estratégica com a Rússia, segunda potência nuclear e décima primeira economia do mundo, sem que o surgir dessa nova era tenha ainda contornos definidos.
A Rússia é comandada pelo autocrata que usa a expansão da OTAN nas proximidades de suas fronteiras como desculpa e oportunidade para reconquistar o território que era parte da antiga União Soviética e, antes dela, pertencera à Grande Rússia dos czares. E o faz em nome da segurança, dos valores tradicionais – a chamada civilização cristã, corrompida pelo Ocidente – e, principalmente do projeto político autoritário que o próprio Putin encarna.
O conflito na Ucrânia e a reação em cadeia por parte dos países alinhados à OTAN, de desfecho ainda incerto, contribuirão para o redesenho do mapa geopolítico, impulsionado por sucessivas crises econômicas mundiais, com epicentro em 2008, agravadas por conflitos armados localizados – Síria, Afeganistão – e pela pandemia, desde 2019.
Passados dez dias desde a invasão, o resultado não foi exatamente aquele orginalmente previsto pelo Kremlin. Houve mais resistência do que esperado, problemas de planejamento e de logística inimagináveis para uma potência militar como a Rússia, além de parte da tropa ter sido informada que faria uma manobra militar rotineira e não uma guerra de invasão.
As operações foram desencadeadas em diversas frentes, sendo a mais eficaz aquela que partiu do sul, da Crimeia. O mapa da intervenção militar mostra o cerco visando impedir a saída para o mar ao Sul, ainda inconcluso – falta tomar o porto estratégico de Odessa –, estendendo para os territórios rebeldes a leste – onde forças militares russas dão cobertura à ampliação da fronteira – e avançando do Nordeste em direção ao centro, onde se localiza a capital Kiev, cuja população armada resiste. Trata-se de um cinturão de proteção que Moscou quer manter livre de armas da OTAN apontando para seu território. Poderá ser o redesenho das fronteiras entre os dois países.
As cartas para a rendição da Ucrânia já estão na mesa. Aliás seu conteúdo já havia sido apresentado e recusado pelos Estados Unidos: rendição militar, desmilitarizar e “desnazificar” o país; mudar a Constituição para garantir que a Ucrânia nunca irá se integrar à OTAN ou à UE; reconhecer a Crimeia como território russo e a independência das repúblicas separatistas. Faltou mencionar, para além disso, a instalação de um governo fantoche, subalterno ao Kremlin, como o da vizinha Bielorrússia, de onde foram deslanchados os ataques a Kiev.
Tem muita coisa em jogo ainda, antes da almejada rendição, a começar pelos efeitos das sanções econômicas e políticas desencadeadas pelos EUA e aliados, com impacto enorme sobre a economia e as condições de vida da população, isolando a Rússia internacionalmente. Putin poderá ter caído numa arapuca, se não conseguir tudo o que quer no curto prazo ou se o preço a pagar por suas exigências for muito alto. Dependendo da extensão das sanções impostas, elas serão também um tiro no pé, reverberando para além dos países diretamente envolvidos.
Foram desencadeadas duas grandes operações pela coligação de países liderados pelos EUA, uma visando ganhar a narrativa política do conflito e a outra com o objetivo de sufocar financeira e economicamente a Rússia. Segundo o analista Antônio Martins, “os EUA apostaram em seu poder comunicacional e financeiro – imensamente superiores aos da Rússia e China. E souberam criar, entre estas vantagens, sinergia instantânea e avassaladora. (…) A Ucrânia passou a ser apresentada como uma democracia ameaçada. Soterraram-se, convenientemente, fatos como a forte presença nazista no golpe que mudou os rumos políticos do país em 2014. (…) Moscou foi convenientemente apresentada como ameaça à segurança mundial, enquanto Washington era pintada como campeã da paz e vingadora das nações oprimidas. A mídia ocidental atuou em uníssono. ” Foram assim suprimidas da memória as invasões militares levadas a cabo pelos EUA e aliados no Oriente Médio – ficando apenas neste exemplo – tão condenáveis quanto a invasão russa.
Segundo o mesmo analista, estava preparado o terreno para a ação mais letal, duas bombas atômicas financeiras: “A partir de 26/2, um conjunto coordenado de ações dos governos e bancos centrais dos Estados Unidos, União Europeia, Reino Unido, Japão, Suíça e Canadá passou a estrangular a economia de Moscou. Todos os bancos russos – com exceção de dois, que recebem diretamente o pagamento pelo petróleo e gás natural exportados pelo país – foram excluídos do sistema Swift, (Sociedade para Comunicação Financeira Interbancária Mundial, na sigla em inglês), o único capaz, hoje, de garantir pagamentos internacionais envolvendo troca de moedas. Num único ato, a Rússia foi cancelada da rede que viabiliza cerca de 90% do comércio internacional – e virtualmente 100%, no caso dos países ocidentais.
Dois dias depois, a segunda bomba: a mesma coalizão de países decidiu unilateralmente tornar indisponíveis cerca de 400 bilhões de dólares de reservas russas, depositados em seus bancos centrais. Na prática, equivale a um sequestro. Formalmente, as somas permanecem sob titularidade da Rússia – mas os bancos centrais proíbem Moscou de movimentar seu dinheiro”.
As medidas foram complementadas por outras, de iniciativa governamental, como o fechamento do espaço aéreo para companhias de aviação russas, ou de iniciativa privada, como o fim da operação de empresas dos EUA e de países aliados em território russo. As consequências vieram de imediato: desvalorização do rublo, queda das Bolsas, disparada do preço do barril do petróleo, do gás e de produtos derivados, como fertilizantes, e do trigo; corrida aos bancos para sacar dinheiro, alta da inflação, tensão social no ar.
Existe o bom senso que que não interessa a nenhum país a ampliação do conflito, embora se reconheça que as condições impostas por Putin para encerrar a agressão não serão facilmente aceitas. Por quanto tempo a economia russa segura a crise, sabendo ser portadora de enormes reservas, grande parte delas lastreadas em ouro? Por quanto tempo controla a situação interna com base na repressão e censura?
Resta ainda saber se, presa na própria arapuca, a Rússia será socorrida pela China e até onde irá esta ajuda. Mais do que isso, a realidade que emergir deste conflito e da crise que já vinha assolando o sistema capitalista internacional, dará mesmo origem a uma nova ordem mundial? Não há respostas precisas e o cenário depende de outros fatores, como indica o analista já mencionado:
“O que farão os chineses? Eles já estão criando, há anos, um sistema de pagamentos alternativo ao baseado em dólares. Certamente desejavam uma transição muito mais suave e pacífica do que a que talvez tenham de iniciar agora. Mas abandonarão Putin? Possivelmente o salvarão — cobrando o preço econômico e político correspondente. Mas a China não tem a menor condição de se desacoplar imediatamente do sistema financeiro que gira em torno do dólar, devido ao imbricamento de sua economia com as ocidentais. Será interessante ver como agirá neste xadrez”.
Nacional
Enquanto o conflito no Leste Europeu não chega a um desfecho, Bolsonaro faz malabarismo para explicar a posição de imparcialidade do governo brasileiro, ao mesmo tempo em que caíram por terra os argumentos usados para justificar a viagem à Rússia e seu encontro com Putin: convencê-lo a não invadir a Ucrânia e assegurar o fornecimento de fertilizantes ao Brasil. A alegada motivação, em si patética, o levou a abandonar à própria sorte centenas de brasileiros que moram no país, sem que houvesse um plano de evacuação organizado pela diplomacia brasileira, ao contrário do que ocorreu com cidadãos de outras nacionalidades, orientados a deixarem o país antes da invasão russa.
Não sem razão, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, aproveitou para criticar o fechamento de fábricas de fertilizantes no país, afirmando tratar-se, para além de segurança alimentar, da segurança do próprio país. Sem dar ouvidos ao bom senso, nem a mão à palmatória, Bolsonaro ainda teve a desfaçatez de aproveitar a crise para justificar a invasão de terras indígenas por mineradoras.
Na surdina, sem fazer barulho, o atual ministro do meio ambiente, Joaquim Leite, continua a devastação da floresta amazônica. O Inpe registrou 430 quilômetros quadrados de alertas de desmatamento em janeiro deste ano. É quatro vezes mais do que no mesmo mês de 2021, quando Salles ainda era ministro. A tragédia causada pelas chuvas torrenciais em Petrópolis foi deixada de lado pela mídia, diante da guerra na Ucrânia – e do feriado de carnaval –, quando as últimas notícias do evento climático extremo registravam 181 mortos e 104 desaparecidos. Horror que não pode ser esquecido.
A revisão da reforma trabalhista, uma promessa de campanha de Lula, repercute positivamente na sociedade. Pesquisa realizada pela Genial/Quest aponta que a maioria da população (58 %) é favorável à proposta, tema que chega ao Congresso. Um seminário sobre a questão foi organizado na casa pelo PT.
Dados divulgados no período mostram que a economia brasileira recuperou as perdas de 2020, ano em que a pandemia levou à recessão. O tamanho do PIB (Produto Interno Bruto), é um pouco maior do que em 2019: 0,56%. Mas a renda (PIB) per capita é menor do que em 2019. Pior ainda, houve um retrocesso ainda maior no consumo das famílias, chegando em um nível similar ao de 2018, que já era ruim. É um dos motivos do sentimento piorado de mal-estar social. Agravando este quadro, os dados sobre a pandemia revelam que a expectativa de vida dos brasileiros recuou em 4,4 anos. Acrescentando um quê de positivo no quadro pessimista, a onda provocada pela variante Ômicron, finalmente, dá sinais de queda.
A campanha agressiva contra a candidatura Lula realizada por setores do agronegócio é mais um indício de como a disputa eleitoral em 2022 será acirrada. Os números das pesquisas continuam indicando relativa estabilidade, com Lula folgadamente na frente (14% das intenções de votos no primeiro turno, segundo a CNT-Confederação Nacional do Transporte), ou com a diminuição da vantagem para Bolsonaro (queda de 10% para 8%, segundo o PoderData).
Lula e PT continuam apostando na estratégia de ganhar nos principais colégios eleitorais do Sudeste (SP-RJ-MG, o chamado “Triângulo das Bermudas” das eleições), enquanto pastores das grandes igrejas que estiveram com Jair Bolsonaro (PL) em 2018 vão emitindo sinais de que tamanho entusiasmo pode não se repetir neste ano, sem que necessariamente abracem o candidato do PT.