Nas duas últimas semanas de dezembro, duas questões centralizaram as atenções: a queda de braços de Lula com Lira na aprovação da PEC do Bolsa Família e a escolha de ministros que ainda faltavam para compor o novo governo. O desfecho do processo mostrou a habilidade do presidente eleito ao trazer para seu comando o controle do orçamento que Bolsonaro deixara nas mãos do Congresso – diga-se de Lira – conferindo ao parlamento desmesurado poder em detrimento do poder executivo. Duas decisões do Supremo foram fundamentais nesse processo. A primeira, tomada pelo ministro Gilmar Mendes, considerou os recursos necessários para manter o programa social Bolsa Família de fora do teto de gastos orçamentários. A segunda, vencida por maioria no colegiado, declarou a inconstitucionalidade das emendas de relator (tornando ilegal o orçamento secreto).
As medidas fragilizaram Lira e colocaram o novo presidente em condições mais favoráveis para aprovar a PEC, ao mesmo tempo em que pavimentaram a concertação com os partidos para constituir uma base consistente de apoio parlamentar, processo que levou à composição final dos ministérios. Embora não tenha obtido maioria na dimensão desejada, o presidente criou condições para uma relação respeitosa nas futuras negociações com o Congresso. Lula afirmou na primeira reunião ministerial, dias depois: “Muitos de vocês são resultado de acordos políticos. Não adianta a gente ter o governo mais tecnicamente formado em Harvard e não ter votos na Câmara dos Deputados”. Com a conclusão da indicação do 1º escalão, Lula consolidou a hegemonia do PT em sua nova gestão. A sigla terá 10 ministérios, incluindo alguns dos principais, como a Fazenda, com Fernando Haddad, e Casa Civil, com Rui Costa. Dos 37 futuros ministros, 26 são homens e 11 são mulheres. A lista conta com 11 futuros ministros negros e 2 indígenas.
As atenções voltaram-se para a diplomação do presidente Lula e de seu vice, Geraldo Alckmin, ocorrida no TSE no dia 12/12. Foi uma cerimônia concorrida, permeada de emoção e de simbologia. Em sua entrada no plenário, Lula foi recebido com aplausos e gritos de “boa tarde, presidente Lula” — uma alusão ao grito que faziam na vigília, quando o presidente se encontrava preso em Curitiba. No entanto, horas depois da diplomação, atos de vandalismo ocorreram impunemente em Brasília, sem que tenha havido reação efetiva das forças de segurança. Foram cenas chocantes que despertaram a indignação, levantaram uma sombra de dúvida sobre a segurança no Distrito Federal e colocaram sob suspeita o governador Ibaneis Rocha (MDB). A inquietação aumentou ao ser desmobilizada, doze dias depois, a tentativa de armar uma bomba na área próxima do Aeroporto de Brasília. Preso, o responsável afirmou que preparava um ato terrorista para o dia da posse de Lula. As medidas de segurança foram redobradas.
Apesar do clima de intranquilidade, a posse do novo presidente no dia primeiro de janeiro foi uma celebração histórica. Apoiadores de Lula vieram de todas as regiões do país e inundaram a esplanada dos ministérios. O presidente Lula e a esposa, acompanhados pelo vice-presidente Alckmin e sua esposa, foram recebidos no Congresso onde foram empossados. Seguiram em carro aberto e subiram a rampa do Palácio do Planalto acompanhados por representantes do povo: uma criança, um indígena, um negro, uma mulher, um operário e uma pessoa com deficiência. Recebeu deles a faixa presidencial, ovacionado pela multidão a quem se dirigiu, afirmando que vai governar para todos, e não somente para quem lhe confiou o voto. “A ninguém interessa um país em pé de guerra. É hora de reatarmos os laços rompidos por discursos de ódio e disseminação de tantas mentiras. Chega de ódio, fake news, armas e bombas. Nosso povo quer paz. A disputa eleitoral acabou. É necessário unir o país. Não existem dois Brasis”, disse.
As imagens repercutiram mundo afora e a posse foi notícia internacional, como a matéria de El Pais: “O dia chegou. Luiz Inácio Lula da Silva é o novo presidente do Brasil. Por volta das 3h da tarde, horário de Brasília, o líder do PT foi empossado no plenário do Congresso como o 39º presidente do país. É o início de seu 3º mandato e a consumação de uma ressurreição política após seu tempo na prisão. O líder mais reconhecido da esquerda latino-americana, de 77 anos, volta ao poder para encerrar 4 anos de deriva da ultradireita. Em seu discurso, o presidente prometeu ‘reconstruir o Brasil’ depois do período de Jair Bolsonaro”.
Uma semana depois, assistimos com perplexidade às cenas da capital sendo tomada de assalto pela multidão de vândalos bolsonaristas. Escoltados pela polícia militar, invadiram e depredaram o Congresso, o Palácio do Planalto e a sede do Supremo. A tentativa de golpe ocorrida no último domingo (08/01), pode ser vista como uma crônica com desfecho anunciado. Mostrou a vulnerabilidade do novo governo na área de segurança, a tensão não resolvida com as Forças Armadas, e a necessidade imperiosa de enfrentar as forças de extrema direita no país e em escala global.
Não foi um movimento espontâneo, muito pelo contrário, foi planejado, arquitetado nas sombras do poder, dando sequência e fechando um ciclo de tentativas com o único objetivo de tomar de assalto o poder e instaurar um regime autoritário, como afirma um analista cujo texto é disponibilizado em anexo: “O que se viu no último domingo foi um ato cuidadosamente montado, com apoio explícito da polícia militar, das forças armadas e de governadores da extrema-direita. Um ato nacional que alcançou realizações simbólicas enormes, como invadir o cerne do poder e se impor como força popular. Ato que se articulou ao bloqueio de refinarias e de estradas. Ou seja, algo que necessita de meses para ser organizado e financiado. Algo que tem um nome técnico bastante preciso: tentativa de golpe de Estado”.
A reação do governo e do poder judiciário conseguiu abortar o golpe, mas não resolveu todas questões envolvidas na trama golpista. Lula decretou a intervenção federal na segurança do Distrito Federal. O ministro Alexandre de Moraes determinou o afastamento por noventa dias do governador Ibaneis Rocha. Determinou ainda a prisão do Secretário de Segurança Anderson Torres (ex-ministro de Justiça de Bolsonaro), do Comandante da PM do Distrito Federal e dos vândalos.
Houve ampla reação em defesa da democracia brasileira no exterior e no país. Joe Biden chamou a ação golpista de ultrajante e manifestou, junto com Justin Trudeau, premiê do Canadá, e López Obrador, presidente do México, solidariedade e apoio irrestrito ao governo Lula. De acordo com reportagem, “diferentes chefes de Estado do Oriente ao Ocidente seguem condenando a tentativa de golpe de Estado dos bolsonaristas no Brasil. Os premiês da Alemanha e do Reino Unido, e porta-vozes da Rússia e da China se somaram às dezenas de chefes de Estado e de governo, nesta segunda-feira (9), ao repudiar o atentado à democracia e respaldar as decisões anunciadas pelo presidente Lula”, que recebeu igual apoio de líderes da América do Sul.
Representantes dos três poderes assinaram um documento conjunto em defesa da democracia. Manifestações de repúdio à tentativa de golpe foram realizados nas capitais dos estados, com destaque para o ato na Faculdade de Direito da USP e a manifestação popular na Avenida Paulista, que reuniu cerca de 50 mil pessoas. Em todos os lugares a palavra de ordem era a mesma: Sem Anistia! Lula se reuniu com os governadores e tirou do limão uma limonada: conseguiu dar mais concretude à chamada frente ampla para fortalecer a democracia e reconstruir o país.
Bolsonaro, refugiado nos Estados Unidos, continuou a contestar as eleições e a difamar o TSE e o Supremo. Desta vez, lhe custou caro. O ministro Alexandre de Moraes o incluiu nas investigações sobre atos com pautas consideradas antidemocráticas que levaram aos ataques do 8 de janeiro. A situação do ex-presidente se complicou com descoberta feita pela Polícia Federal na casa de Anderson Torres, seu ex-ministro da Justiça. A minuta de um decreto de estado de defesa específico para o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) tem nome e sobrenome: golpe. O fato acelera de forma dramática o fechamento do cerco jurídico que está sendo feito a Bolsonaro. Deputados do Partido Democrata pressionam o presidente Biden para expulsar do país o visitante indesejado.
A ação golpista que atingiu e destruiu parcialmente estruturas materiais do poder foi um ponto de inflexão na conjuntura e seu significado político ainda está longe de ter sido plenamente elucidado. Várias questões continuam em aberto, demandam esclarecimento e respostas urgentes. Duas delas estão intimamente imbricadas: a necessária desmilitarização do sistema de segurança e de inteligência do governo e a relação com as Forças Armadas. A decisão de Lula de optar pela intervenção na segurança do DF no lugar de acionar o recurso da GLO (Garantia da Lei e da Ordem) foi um ato extremamente perspicaz e carregado de simbolismo político. Não entregou o poder para um general, que assumiria o comando do DF, e mandou novamente o recado: as FFAA não são um poder moderador, nem tutelam a democracia. Está na hora de virar a página.