A semana iniciou-se com Bolsonaro organizando a farsa para comemorar os mil dias de seu desgoverno. Para uma realidade que não aponta nada digno de comemoração, foi ridículo o presidente correr o país para “inaugurar” obras já inauguradas, como foi inadmissível gastar dinheiro público para arregimentar plateia paga para palanques de ocasião.
A realidade, nefasta e cruel, é de quase 600 mil vítimas da Covid, mortes que em grande medida poderiam ter sido evitadas não fosse a política errática e intencional de imunização de rebanho, de prescrição do tratamento precoce, inócuo e de risco; não fosse ainda a ação criminosa de postergar a compra de vacinas e de entregar o Ministério da Saúde a militares que nada entendem de combate à pandemia, menos ainda de logística, mas que se mostraram permeáveis à corrupção. Nada a comemorar aqui e também no restante do mundo onde a pandemia causou a diminuição da expectativa de vida em cerca de dois anos, o maior retrocesso desde a II Guerra Mundial.
Ainda a reprovar os mil dias de desgoverno Bolsonaro foram as mensagens nos cartazes e faixas carregadas elos manifestantes ou proferidas por representantes de partidos políticos e entidades da sociedade civil que saíram às ruas, no 2 de outubro e em 304 cidades do Brasil, para exigir o impeachment de Bolsonaro. Não foram atos exclusivamente de militantes sindicais e de movimentos populares. Não. A manifestação na Avenida Paulista reuniu, emblematicamente, cerca de 100 mil pessoas, jovens, adultos, idosos, famílias com crianças, de diferentes classes sociais, fazendo ecoar na memória de gerações passadas lembranças das Diretas Já e do Fora Collor.
O 28 de setembro – de 150 anos da Lei do Ventre Livre e percebido por poucos – se colocou teimoso entre as datas anteriores para nos lembrar de mais uma mazela do Brasil, a de não ser uma democracia racial. Muito ao contrário. Apesar de serem a maioria da população, os negros e negras brasileiros são os mais vulneráveis à pandemia, os mais atingidos pelo desemprego, pelo trabalho precário e pela fome. Superlotam prisões, continuam sendo atingidos por balas perdidas e são assassinados nos becos e ruelas de morros e bairros periféricos por serem vítimas do racismo estrutural, que sobreviveu à abolição da escravatura.
No mais, assistimos à movimentação do tabuleiro político, com a anunciada fusão do PFL e DEM e o anúncio do PSOL de que não lançará candidato à presidência. As articulações continuam no plano regional e nacional, com Lula se movimentando também em direção ao centro, enquanto o centro conservador ainda busca a união em torno de um nome que não seja Bolsonaro. Especula-se que o impeachment daria cabo à situação de entropia em que se encontra o governo e permitiria o rearranjo da centro-direita. A lenta sangria de Bolsonaro, por sua vez, favoreceria Lula, que continua na dianteira da corrida eleitoral. Nada, no entanto, é definitivo e muita coisa pode acontecer até outubro de 2022.
Pesarão no tabuleiro, numa ou noutra direção, o desempenho da economia, por ora combalida e sem previsão de mudança significativa de rumo, o controle efetivo da pandemia, as iniciativas na área social, e especialmente a possibilidade de explorar a indignação da população, colocando a sociedade em movimento e oferecendo-lhe um fio consistente de esperança.