Segundo o colunista Chico Alves, “todo dia o presidente Bolsonaro inventa uma mentira – ou várias. São mentiras pesadas, que visam arrasar a reputação dos adversários, esconder os próprios malfeitos ou desestabilizar as instituições do país”. Depois de comentar que nos acostumamos a um presidente mentiroso, ao qual assistimos quase sem reação, arremata: “A única verdade em Bolsonaro é a intenção golpista, que nunca se deu ao trabalho de esconder”.
O comentário é interessante para se entender o que ocorreu na semana que se encerra. Depois de oficializada a vinda de Ciro Nogueira para a Casa Civil, mais um revés dos militares na disputa com o centrão por espaço no governo, Bolsonaro foi aconselhado a moderar o discurso. No entanto, dias depois, participou de uma live, organizada pelo general Ramos, em que não conseguiu comprovar a alegada fraude no atual sistema de voto eletrônico e foi pródigo em mentiras, impropérios e ameaças: “Queremos eleições, votar, mas não aceitaremos uma farsa como querem nos impor. O soldado que vai à guerra e tem medo de morrer é um covarde. Jamais temerei alguns homens aqui no Brasil que querem impor sua vontade“.
A fala foi considerada patética por uns e Bolsonaro um moleque, por outros. O fato de políticos do centrão não terem conseguido botar focinheira no pitbull tem uma explicação imediata: Bolsonaro usa o discurso radical para energizar sua base eleitoral. E não deu outra. Mal acabou a live e nas redes bolsonaristas fervilhavam as fake news, do tipo: “Live bomba de Bolsonaro: a urna em xeque”. Na realidade, com a posição contrária da maioria absoluta dos partidos políticos, a proposta do voto impresso deverá ser descartada na comissão que analisa o projeto, dispensando a votação no plenário da Câmara, logo no retorno do recesso parlamentar.
No entanto, a participação do ministro da Justiça, Anderson Torres, na live chamou a atenção de integrantes das cortes superiores. Sendo responsável pela Polícia Federal, ter estado ao lado de Bolsonaro em evento para divulgar supostas fraudes nas eleições foi avaliado como um ataque velado ao pleito. Ou seja, a ameaça permanece, mesmo que o projeto de voto impresso seja rejeitado no parlamento. Segundo analistas, o presidente e seus aliados mais próximos, testam, de um lado “ as reações do Congresso e do STF, querem saber até onde vai a tolerância diante da ameaça de subversão da ordem democrática. De outro, enviam sinais para grupos bolsonaristas em quartéis militares e policiais: querem indicar claramente de que lado estão. Liberdade, na novilíngua deles, é senha golpista”.
Em outras palavras, é necessário compreender que Bolsonaro não abriu mão do recurso ao golpe, mesmo que partidos do centrão tenham afirmado que não o acompanharão nesta aventura. Poderá contar com o apoio das FFAA, para “o que der e vier” (leia-se, mesmo que seja derrotado nas urnas), como chegou-se a dizer do pacto selado por ocasião da não punição de Pazuello ? Essa é ainda uma incógnita.
Além de derrotar o projeto do voto impresso na comissão, a reação parlamentar tem vindo pela via jurídica. Doze partidos protocolaram requerimento no STE: querem que o presidente preste esclarecimentos sobre as acusações feitas na live. O Supremo, indiretamente, aperta o cerco. Alexandre de Moraes determinou que a Polícia Federal retome as investigações sobre a suposta interferência de Bolsonaro na instituição. As frentes populares e partidos de esquerda programam novas manifestações de rua em agosto, quando funcionários públicos promoverão uma greve, e em setembro, quando engrossarão as manifestações do Grito dos Excluídos.
É necessário fazer mais para fortalecer as manifestações de rua. Ainda falta investimento na comunicação, explorando as contradições e efeitos nefastos do governo Bolsonaro. Na semana que passou, sobraram notícias: os dados da pandemia continuam preocupantes, com o risco da variante Delta do corinavírus tornar-se dominante e ameaçar os resultados até agora obtidos com a vacinação, como já está ocorrendo em outros países; fenômenos climáticos extremos (inundações na Europa, frio intenso no Sul e Sudeste do Brasil) colocam a questão do meio ambiente no centro do debate sobre qualquer proposta séria de desenvolvimento; aumento do desemprego e perspectiva de pleno emprego postergada para daqui dez anos, enquanto Guedes desqualifica a pesquisa do IBGE sobre o desemprego e Bolsonaro entrega ao inepto Onyx os interesses dos trabalhadores e dos aposentados, entre outras. Quantas dessas notícias chegaram aos trabalhadores, despertando sua indignação?
É preciso ir além, na construção de um processo contra-hegemônico. Um exemplo é a decodificação do discurso bolsonarista quando usa o conceito de liberdade para justificar sua política: “No universo bolsonarista, liberdade não é um valor, mas o alicerce para fraudes conceituais em série. Liberdade de religião serve, nessa moldura, para promover a colonização do Estado laico por seitas cristãs que orbitam o governo. Liberdade de expressão, para evitar a criminalização de conclamações à violência contra as instituições democráticas. Liberdade de ensino, para substituir a escola pela educação doméstica, de modo a isolar as crianças em bolhas de preconceito e ignorância. Liberdade individual, para legitimar a distribuição de armas a milicianos” (D. Magnoli).
Enfim, é necessário um trabalho mais intenso da oposição e da esquerda no sentido de pautar o debate político, como tem feito a CPI da Covid, ou continuaremos reféns do discurso bolsonarista no cercadinho do Planalto e em lives como a da última semana.