As canelas finas sustentadas por pés chatos e calcanhares salientes, a pele escura, o nariz adunco e os cabelos crespos, despertam comentários maldosos. Interrogado sobre a origem do sobrenome, responde que o avô era italiano, da região de Marche. “O bisavô deve ter emigrado da Abissínia”. O comentário racista do professor de literatura desperta o riso dos colegas. Excluído das rodas de amigos, experimenta a cada dia a amarga experiência de sentir-se à margem. No deserto de dunas escaldantes, a luz do sol penetra a íris como ácido corrosivo, as mãos tremem e o peito chia, o sentimento de nada ser dilacera a alma, pressiona os pulmões, tecendo no interior dos alvéolos uma crosta que bloqueia o ar vindo dos brônquios, comprime o coração, transformando a rede de vasos sanguíneos em filigranas da armadura que comprime os músculos, impedindo-o de respirar. Na situação limite de quase desistência, resiste e arrasta o próprio peso de continuar vivendo.
Exorciza o estigma com a rebeldia. Transforma preces em blasfêmias. Rompe as barreiras da interdição e beatifica o profano. Redige em folhas de pergaminho antigo o próprio código de honra. Transforma o pecado em virtude. A sede e compulsão de viver em estado de graça o levam a buscas incessantes pelo prazer bandalho, dissoluto. Masturba-se diante da imagem de São Sebastião, enquanto na capela ao lado o coral de vozes infantis entoa o Misere nobis. Perambula pelas ruelas do centro decadente da capital e para diante do camelô que oferece bugigangas aos transeuntes. Apaixona-se por seus lábios grossos e sensuais. Entrega-se ao abraço forte e ao sexo animal, protegidos por carroças de lixo no beco escuro.
Convive com bandidos e criminosos. Reaprende as leis da sobrevivência. Larápio, madraço, vigarista, vadio, ratoneiro, trombadinha, maltrapilho, assassino. Suas origens se perdem em fiapos esgarçados da memória. Em momentos de solidão, quando o sono não chega, enquanto tenta se aquecer, acocorado em frente à fogueira de madeira tirada do lixo, deixa-se trair pelas lembranças. Não consegue impedir que a lágrima miúda embace a visão. No único momento em que se deixa invadir pela ternura, o coração treme ao ver a madona puxar pela mão o menino gorducho, enquanto luzes da noite iluminam seus passos pela ruela estreita. Adormece em seu regaço.