Viagem ao Equador e Peru, janeiro de 1994
Antecedentes
Viajar ao Peru e visitar a cidade sagrada de Macchu Picchu era o sonho de todo estudante universitário descolado na década de 1970. Alguns faziam a viagem de trem, o famoso Trem da Morte, e voltavam contando estórias hilárias sobre as peripécias do percurso de Campo Grande, Mato Grosso, a Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, em vagões apinhados de passageiros e animais. A aventura continuava até a capital La Paz, onde se tomava o ônibus em condições não menos precárias rumo a Copacabana, à beira do lago Titicaca. A travessia do lago levava a Puno, já em território peruano, e a viagem continuava em condições semelhantes de desconforto e insegurança até Pisac, primeiro sítio arqueológico no interior do chamado Vale Sagrado.
No final de 1973, cheguei a pensar em usar a verba do 13º salário e das férias na PUCSP para realizar a viagem, mas acabei desistindo. Usei os recursos para comprar um toca-discos de última geração. Continuei fazendo parte do autodenominado grupo “amigos que viajarão ao Peru” e nos reuníamos com certa frequência e por puro divertimento para especular sobre a provável aventura ou para ouvir o relato de alguém que a havia realizado. Como o tempo, eu falava com tal propriedade sobre a experiência, conhecia tantos detalhes, que dava a impressão de ter feito a viagem.
Ela se tornou possível vinte anos depois, no verão de 1994. Havia recebido o comunicado de ter passado na rigorosa seleção da Fundação Fulbright para participar do programa de doutorado em relações do trabalho na Universidade de Cornell, NY, a partir de julho daquele ano. Resolvi vender o velho fusca e usar os recursos para, finalmente, realizar o sonho de conhecer Macchu Picchu. Depois de ter feito várias viagens à Europa nos anos anteriores e antes da temporada nos Estados Unidos, estava na hora de conhecer melhor o nosso próprio continente. De posse das dicas de um amigo que trabalhava na Fundação Friederich Ebert e que morara no Equador, montei um roteiro por uma trilha imaginária do antigo império Inca, cruzando-o de norte a sul. Comprei passagens na Varig, que na época oferecia serviços impecáveis, com o seguinte roteiro: Belo Horizonte – São Paulo – Quito no dia primeiro de janeiro; Quito – Cuenca, quatro dias depois, numa conexão doméstica; a travessia pela cordilheira, em micro-ônibus, de Cuenca a Baños; retorno à capital equatoriana no dia 8 de janeiro, quando pegaria o voo para Lima, onde permaneceria até dia 12; voo para Cusco e permanência no Vale Sagrado por uma semana; percurso terrestre de Cusco a Puno, travessia do Lago Titicaca, parada em Copacabana e visita à Porta do Sol, no sítio arqueológico de Tiwanaku; viagem a La Paz e retorno ao Brasil no dia 25. Não conclui a parte final do roteiro passando pela Bolívia, como será descrito na memória dessa viagem. As fotos, feitas há quase 30 anos de forma analógica, foram recuperadas, mas a qualidade na versão digital foi prejudicada pelo desgaste das imagens ao longo dos anos.
Quito, a capital do Norte
Malas arrumadas e todos os detalhes da viagem conferidos, me lembro de ter ficado um bom tempo observando a noite iluminada do bairro Gutierrez onde morava em Belo Horizonte, observando a chegada do Ano Novo. O embarque no aeroporto da Pampulha pela manhã e a conexão em Cumbica para Quito foi tranquila e sonolenta. Dormi durante quase todo o voo e tive uma ótima impressão da capital equatoriana, vista de cima e de forma panorâmica, meu destino final. Era nítida a divisão da parte antiga e colonial da cidade e os bairros residenciais, uma imagem de tranquilidade e acolhimento que esperava corresponder à descrição e aos comentários do amigo Achim.
Me hospedei num hotel em San Isidro, nas proximidades da embaixada norte-americana. A tarde do sábado foi para descansar e fazer um rápido reconhecimento do bairro. Aproveitei para programar o passeio no dia seguinte ao conhecido local por onde passa a linha imaginária do Equador e que abriga, aos domingos, uma famosa feira de artesanato. Não deixou de ser interessante como primeiro contato com o país. A paisagem é exuberante, mas as construções seguem um padrão europeu, como se estivéssemos numa região alpina. Aproveitei para fazer boas compras de artesanato, especialmente peças de cerâmica que ainda mantenho em meu acervo.
A segunda foi dedicada ao reconhecimento do centro histórico. Construções coloniais e templos religiosos foram erguidos sobre ruínas e bases de pedra de edificações incas. Quito fora projetada como a capital do Norte do Império e seguia o traçado de Cusco, a capital do Sul, com vias e muralhas compondo a figura do puma, animal sagrado e símbolo de poder político e religioso. O templo do Sol era estrategicamente localizado no espaço correspondente ao coração do animal. A morada do imperador, por sua vez, fora erguida onde emanava sua força vital, o aparelho reprodutor.
Tudo foi destruído e o centro da Quito colonial foi disputado e repartido entre o poder político – palácio do governo, sede do aparato administrativo do Estado – e o poder religioso, as ordens religiosas que ali ergueram inúmeros conventos que concorriam entre si pela grandeza e esplendor de suas igrejas. Elas ainda podem ser vistas, para o encanto dos olhos do turista, como registro e lembrança da colonização espanhola, uma cruel e triste história de subjugação e dominação dos povos originários.
Como em todas as capitais do império espanhol, Quito seguiu, dentro do possível e de forma menos imponente do que a encontrada em Lima, o traçado que expressa o poder colonial e sua racionalidade: a praça retangular onde se concentram a sede do governo, das armas, do aparato jurídico e do poder religioso, e de onde surgem as avenidas em linha reta em direção às estradas que cruzam o interior do país.
Gastei um bom tempo para visualizar esse projeto, caminhando por avenidas, parando em praças para examinar mapas, ler informações mais precisas, admirar fachadas monumentais e o interior de igrejas barrocas, tirar fotos. Uma das mais impressionantes estava fechada naquele dia, a Igreja de São Francisco. Aproveitei para ver a Igreja da Companhia de Jesus e, depois de uma boa caminhada, a Igreja de São Domingos.
Estava numa dessas praças escrutinando sobre os joelhos mapas e guias turísticos quando fui abordado por um rapaz oferecendo-se ´para ser meu guia. Disse-me que mostraria, a um preço módico, detalhes do centro colonial que não estavam na parafernália de papel que estava examinando. De fato, me mostrou ruelas, mercados e casario no centro histórico onde a vida pulsa de forma diferente, especialmente para a população de origem indígena que se sente subjugada e oprimida pela minoria branca.
Depois de bater perna o dia inteiro, estava na hora de voltar para o hotel para uma chuverada e o mais que merecido jantar. Por precaução, evitei fazer refeições fora do hotel. Havia no ar, e nos jornais, notícias de um surto de cólera no país.
A manhã de terça foi dedicada a uma das experiências mais espetaculares em Quito, a visita ao complexo cultural mantido pela Fundação Guayassami. Expostas cuidadosamente ao público estavam as obras colecionadas ao longo da vida do maior artista plástico equatoriano, Oswaldo Guayassami. O precioso acervo era belissimamente organizado em três pavilhões: o primeiro dedicado a peças de origem pré-colombiana, cobrindo diversas culturas e tipos de artefato; o segundo dedicado à arte colonial e o terceiro onde estavam expostas pinturas expressionistas do artista, acervo de encher os olhos de admiração (*). Aproveitei para comprar uma réplica, pintura sobre tela, de seu famoso quadro Ternura, que mantenho até hoje sobre a cabeceira de minha cama.
A tarde foi para descansar e arrumar as malas para o voo, na manhã seguinte, para Cuenca, quase na fronteira ao sul com o Peru. A cidade é famosa pela sua catedral monumental, por ser o centro de produção dos famosos chapéus Panamá e por uma vida cultural relativamente intensa. Nas suas proximidades, poderia encontrar sítios arqueológicos importantes e bem preservados da civilização inca, objeto central da viagem. Cuenca não decepcionou, mas também não teve nada de excepcional que empolgasse.
Dois dias depois da chegada, peguei um pequeno ônibus em direção ao sitio arqueológico de Ingapirca, a poucos quilômetros ao norte. Fui deixado pelo motorista na única rua de um vilarejo que parecia levar o nada a lugar nenhum. Por sorte, um pequeno fazendeiro passou numa caminhonete. Perguntei como chegar às ruínas e ele se ofereceu para me levar até lá, por um preço razoável, incluindo as horas para visitar o local e me trazer de volta. Valeu a pena. Foi meu primeiro contato com um sítio bem preservado, um complexo de construções de pedra onde se destaca o templo dedicado ao Sol. Trata-se, na realidade, de centro religioso e astronômico, cujo conhecimento orientava o plantio, o cultivo e a colheita de grãos. Por suas janelas estrategicamente localizadas passam os raios do sol no solstício de verão, tempo de celebrações e rituais mágico-religiosos.
No dia seguinte, peguei o micro-ônibus que me levou à verdadeira aventura de cruzar a cordilheira dos Andes rumo à cidadezinha turística de Baños, situada no sopé da montanha. A estrada de terra tinha um traçado irregular e em algumas passagens beirava o precipício. O veículo era algo totalmente original, uma espécie de adaptação de velho jipe para o transporte de passageiros, uma geringonça sem qualquer segurança. Paramos no meio do caminho numa estalagem para comer um prato típico, leitão assado com legumes. Chegamos a Baños no final da tarde.
Banho tomado no pequeno e acolhedor hotel, parti para reconhecer o terreno. Entrei numa casa noturna, uma espécie de clube, e tive a mais surpreendente e grata surpresa. O local era descolado, frequentado por viajantes de diversas partes do mundo, onde se ouvia o melhor jazz e o melhor rock e onde se serviam bebidas as mais diversas. Fui muito bem atendido ao pedir uma dose de Remy Martin.
Na manhã seguinte, seguindo as orientações do proprietário do hotel, contratei um guia para me mostrar os arredores da cidade, subir as encostas do morro, na realidade um vulcão adormecido. Quase não acreditei quando o rapaz apareceu em frente ao hotel com dois pangarés para fazer o percurso encosta acima. Foi uma aventura e tanto por trilhas nem sempre seguras, em zig zag. A paisagem, ali do alto da montanha e tão perto das nuvens, com uma vista exuberante da cordilheira, valeu a pena.
Por uma questão de segurança, e de conveniência, o trajeto, no dia seguinte, em direção às fímbrias da Amazônia foi feito numa caminhonete. Novamente, a paisagem espetacular, o riacho que desaparece no perigoso “sumidouro” entre as rochas para reaparecer, quilômetros à frente, como majestosa queda d’água no contraforte da montanha compensaram a aventura, além da rápida passagem pelo centro de recuperação e criação de condores.
De volta a Quito e ao mesmo hotel, aproveitei para recuperar energia e me despedir com o famoso risoto de frutos do mar, embora a prudência recomendasse evitar este tipo de prato. Passei a noite tomando água com limão para conter o desarranjo intestinal e poder viajar, na manhã seguinte, para Lima.
Peru
Lima
Preferi me hospedar no pequeno hotel em Miraflores, local que habitava meu imaginário desde a leitura dos romances de Vargas Llosa, especialmente o Conversas na Catedral. Não me arrependi. Ainda se podia respirar aquela atmosfera nostálgica dos anos sessenta no bairro de classe média alta, situado na orla do Pacífico. Com todas as vantagens e riscos, como ter sido assediado por garota de programa no caminho do hotel ao restaurante, à noite. Mais tarde, fiquei sabendo que se tratava de um golpe para assaltar turistas desavisados: a vítima geralmente era levada para um local escuro onde comparsas faziam a limpeza, levando dinheiro, documentos, especialmente o passaporte.
Contratei os serviços de uma empresa local de turismo para me mostrar o centro histórico da capital e organizar o roteiro de viagem pelo Vale Sagrado, a partir de Cusco. A experiência em Quito mostrara o tempo que se perde tentando organizar a cada dia o que fazer. A praça central de Lima segue o padrão mencionado das capitais coloniais da América espanhola. Além da catedral e dos edifícios públicos, chamaram a atenção os balcões de madeira das casas senhoriais, finamente trabalhados. Visitei também o Museu Arqueológico Rafael Larco Herrera, no bairro Pueblo Libre, com rico acervo em cerâmica das culturas pré-incaicas, além das peças em ouro e prata e da ala dedicada à arte erótica, também em cerâmica. A indisposição de minha “guia turística” (certamente arranjada de última hora) com meu interesse em conferir detalhes, parar para fotografar, acabou tornando o passeio menos prazeroso.
Cusco, a capital do Sul e o coração do império
Na manhã seguinte tomei o voo para Cusco, meu principal interesse na viagem. A cidade, de casario de tijolos ocre e ruelas que seguem o traçado original da capital do Império Inca, impacta à primeira vista. Em algumas das ruas, alicerces e paredes de pedras serviram de suporte para construções coloniais, numa dimensão muito mais ampla do que em Quito.
Passar por essas ruelas provocou a sensação de voltar no tempo. Caminhei longamente pela cidade, registrando momentos, detalhes, até parar num dos cafés da praça central para tomar um suco de plátano (banana). Aproveitei para registrar cenas de um desfile militar que por acaso acontecia.
A efervescência de pessoas circulando, muitas delas turistas de todos os cantos do mundo, outras seguindo a rotina do cotidiano, pessoas comuns de fortes traços indígenas, a imponência da catedral e o aspecto lúgubre de suas imagens e pinturas, quase espectrais, conferiam ao ambiente e à experiência vivida, ali, naquele local que havia sido um sítio sagrado da civilização inca, uma mistura de severidade e leveza, liberdade e disciplina, quase opressão.
O Vale Sagrado
O circuito pelo Vale Sagrado começou na manhã seguinte com um tour dirigido à pequena cidade de Pisac, a trinta e três quilômetros de Cusco. Percorremos o que restou de construções em pedra razoavelmente preservadas, dando uma ideia precisa do que poderia ter sido a vida naquele posto avançado do império, séculos atrás. O complexo arquitetônico, um dos mais importantes da civilização inca, compreende vários setores e edifícios, além de túneis, pontes, aquedutos, torres, templos e terraços agrícolas. A pequena cidade tem uma parte de casario colonial e na sua praça central há uma feira multicolorida de produtos artesanais e alimentos.
Na volta, paramos na fortaleza de Sacsayhiaman, com paredes de blocos monumentais de pedra e traçado em zig zag, que no projeto arquitetônico original correspondia à boca do puma, escancarada, deixando à mostra a fileira serrilhada de dentes e presas afiadas, prontas para defender a cidadela. Imagina-se que sua construção tenha sido iniciada no governo do Inca Pachacutec, no século XV. Os enormes blocos de pedra, alguns pesando cerca de oitenta toneladas, foram retirados de pedreiras a vinte quilômetros de distância. Até hoje é um mistério como foram transportados.
Surpresa maior fora reservada para o dia seguinte, a visita à fortaleza de Ollantaytambo ou Ullantay Tampu (em quéchua), situada no Parque Nacional Arqueológico do mesmo nome, a 90 km de distância de Cusco. O nome significa “ponto de descanso com uma vista do alto”, por ser o ponto de parada para quem fazia o trajeto entre Macchu Picchu e Custo. Conhecida também como “portal dos incas”, surpreende e encanta por sua grandiosidade, mistério e posição estratégica que permite uma visão espetacular do vale e das encostas por onde se espalham as construções de pedra e silos de grãos, escavados nos paredões da montanha. Mas o que chama mesmo a atenção, à primeira vista, é a monumentalidade dos blocos de pedra finamente lavrados usados nas construções, especialmente na parte central da fortaleza.
A cidadela era um complexo militar, religioso, administrativo e agrícola, um dos mais impressionantes do antigo império inca. Uma verdadeira obra de arte, arquitetura de grande conhecimento técnico no corte, polimento de pedras a quilômetros de distância e que se encaixam perfeitamente, não deixando espaço entre elas para a lâmina de uma faca. Conhecimento que envolveu também uma verdadeira engenharia de transporte dos blocos maciços de pedra, usando-se apenas cordas, toras (desconheciam a roda) e força física, especula-se.
Chama também a atenção o traçado da cidade, ainda em perfeito estado, de ruas estreitas e pitorescas, formando grupos de casas ao norte da praça principal. Como em outros locais, casas coloniais foram construídas sobre bases e muros incaicos polidos com esmero. O tom das pedras é róseo, mais claro ou mais escuro, que transmite alegria e vida ao serem iluminadas e aquecidas pelos raios do sol. O sistema de fornecimento de água, através de estreitos canais entre as construções, permanece até hoje, demonstrando novamente o acúmulo de saber técnico na canalização e transporte de água a longa distância.
A sensação única de conhecer esse local, a vista a se perder no horizonte onde a luz traceja o limite difuso entre a terra e o céu, a brisa que aconchega e parece atravessar o corpo com a carga misteriosa de energia, a felicidade de estar ali, no centro do antigo império que há tempos desejava conhecer, de se tornar um pouco mais humano depois dessa experiência de tocar o coração, certamente me haviam preparado para aquela que seria o mais espetacular momento da viagem: conhecer Macchu Picchu.
Macchu Picchu
A expectativa era enorme. Meu interesse por essa cidade misteriosa vinha de longa data, quando li o relato de sua “descoberta”, feito por Hiram Bingham em 1911, publicado no livro que ganhara de um casal de amigos norte-americanos com quem correspondia na década de 1960: Conqueros without sword (Conquistadores sem espada, alusão aos arqueólogos que haviam feito descobertas nos três continentes americanos): “Após surpresas seguidas de outras, veio a percepção que estávamos no meio de maravilhosas ruínas que ninguém jamais havia encontrado no Peru … É possível que nem mesmo os conquistadores espanhóis tenham visto este lugar maravilhoso. “
Peguei o trem que sai de Poroy para Aguas Calientes no final da manhã. O plano era chegar na estação de águas no final da atarde, a tempo de experimentar o banho térmico em suas piscinas, como recomendavam aqueles que pertenciam ao saudoso grupo de “amigos que viajarão ao Peru”. Além da experiência relaxante, havia outra vantagem em pernoitar em Aguas Calientes: entrar na cidadela de Macchu Picchu no início da manhã, assim que seus portões fossem abertos, passar mais tempo no local livre da avalanche de turistas que começa a ser despejada pelos trens que chegam a partir das 11h.
O banho nas piscinas termais me lembrou o relato da amiga Ana Motta, pouco ou quase nada havia mudado. Só não teve aquele lance de permanecer nas “aguas calientes” noite adentro, à luz de velas. Depois de um tempo de verdadeiro relaxamento, voltei ao acolhedor hotel, no meio da mata, onde me hospedara. Servido o jantar, logo me recolhi ao charmoso bangalô de onde se ouviam os sons da noite, entre eles o da cachoeira do rio Urubamba, ao longe.
Café tomado, pegamos o micro-ônibus que leva turistas encosta acima e em zig-zag até a cidade sagrada. É difícil descrever, tantos anos depois, a emoção e as sensações que tomaram todos os sentidos ao botar os pés naquele local. Sabia que estava pisando em território sagrado, ali no cume da montanha, ela mesma uma divindade venerada pelos ancestrais incas. Existia uma energia entre as duas montanhas, Macchu Picchu e Huna Picchu, morada de deuses, onde os incas haviam construído a cidadela, cuja finalidade até hoje não se sabe e ainda é objeto de muita especulação. Centro religioso, como a pedra de sacrifícios (de animais e humanos) sugere? Fortaleza militar e local de resistência onde se refugiou parte da elite do império conquistado pelos espanhóis, protegida pela floresta impenetrável e pelas encostas abissais? Centro avançado de estudos científicos e astronômicos, favorecido pela localização privilegiada? Ou tudo isso, ao mesmo tempo? Por que a cidadela foi abandonada e tomado pela mata, até ser revelada ao mundo pelo arqueólogo da Universidade de Yale, em 1911?
Diante de tantas especulações, decidi fazer minha própria descoberta deste local misterioso e prenhe de energia. Caminhei por suas ruelas, até a Casa do Vigia, de onde se tem uma vista panorâmica de todo o sítio sagrado. Apenas um turista japonês circulava pela área, carregando uma pesada mochila cheia de equipamentos fotográficos. Fui tomado por uma sensação de paz e serenidade deixando os olhos se embriagarem de beleza, a mais pura, da natureza em exuberância, onde a mão do artesão colocara pedra sobre pedra para transformar as encostas em terraços para o cultivo de alimentos, em casas de simetria e equilíbrio compondo uma paisagem de ruelas traçadas em diferentes níveis, arquitetura e obra humana disputando a placidez com a natureza.
Feito esse primeiro reconhecimento, me enturmei de contrabando em grupos de turistas que começavam a chegar em crescentes vagas para ouvir explicações dadas por guias que tentavam explicar o significado das três janelas que se abrem, numa das construções, para o horizonte, levantando a hipótese de representarem as três vertentes originárias do povo e império inca; ou que davam detalhes sobre o local onde os prisioneiros ficavam presos, antes de serem cerimonialmente sacrificados; ou ainda, que explicavam como fora feito o processo de captação e canalização da água que abastece a cidadela.
Já era o começo da tarde quando me reencontrei com a turista argentina que viajara a meu lado no trem. Queria repartir com ela a pequena garrafa de vinho tinto que ganhara no voo de Quito para Lima. Sentamos à sombra da árvore no centro da praça gramada e tocamos impressões. Os pelos dos seus braços estavam arrepiados, como que envoltos por uma energia estranha, presente, emanando das entranhas da terra. Decidiu permanecer ali, em meditação. Resolvi realizar um dos sonhos acalentados há tempos: escalar a Montanha Pequena (Huana Picchu) e fotografar do seu cume a cidadela encravada nas encostas da Montanha Grande (Macchu Picchu).
Passei pelo local de controle de turistas que fazem a escalada, preenchi documentos atestando estar ciente dos riscos da empreitada. O guarda responsável tentou me dissuadir. Disse que em vários pontos a subida era extremamente difícil, que podia encontrar animais selvagens pelo caminho, como cobras. Diante da minha teimosia, por fim disse: “Na semana passada, uma turista japonesa despencou da trilha e virou massa de tomate”. Continuei, mesmo assim, no meu propósito.
A subida começou sem grandes dificuldades, seguindo a trilha que faz o contorno da montanha. Aos poucos, foi se tornando mais complicada. Evitei olhar para baixo, especialmente nos locais em que precisei de me segurar em cordas para continuar subindo. Foi preciso um exercício de contorcionismo para passar entre raízes e cipós para chegar ao topo. No local havia um pequeno altar de pedra. Tive que fazer um movimento cauteloso para encontrar apoio e poder conseguir o ângulo para a última foto disponível no filme da pequena máquina fotográfica. Valeu a pena. A visão do alto da montanha era simplesmente indescritível. A emoção, pelo sonho realizado, inigualável. Fiquei ali mais alguns minutos, como se o tempo tivesse paralisado, em estado de vigília, embevecido com tanta beleza e majestade.
Na volta, encontrei minha amiga angustiada, quase em desespero, imaginando que algo de ruim pudesse ter me acontecido, porque estava demorando muito para voltar. Rimos muito, mas de alegria, no caminho de volta, desta vez no trem de Aguas Calientes em direção a Ollaymtaytambo, onde pegamos o ônibus para Cusco. Ficamos de nos encontrar no dia seguinte.
Almoçamos num pequeno restaurante na praça central. Ela retornaria na manhã seguinte para Buenos Aires. Eu tinha pela frente a viagem rumo a Tiwanaku, na Bolivia, de onde voltaria para São Paulo. Caminhei pelas ruas de Cusco, aproveitando novamente para fotografar detalhes que lembrassem vestígios da civilização inca. Senti por dias seguidos estar tomado por uma energia estranha. Ao caminhar, meus pés pareciam flutuar sobre as pedras das calçadas. Algo parecido com embriagues, um estágio distinto de consciência e de sensibilidade, os sentidos parecendo fluir noutro eixo. Jamais experimentara sensação igual.
No último dia em Cusco, visitei a igreja de São Domingos, construída sobre as ruinas do Templo dedicado a Koricancha, o deus Sol. Revoltante. De volta ao hotel, tomei a decisão de interromper a viagem e retornar para Lima e de lá para São Paulo. Passei numa agência de viagem e negociei com a Varig a alteração do trajeto. Não houve custos adicionais. Dois dias depois, estava novamente em casa, com as malas abarrotadas de peças de artesanato. No coração, e nas lembranças, a certeza de ter feito uma das mais gratificantes viagens da minha vida. Finalmente havia me incorporado no “grupo de amigos que visitaram o Peru! ”.