Volta ao local todos os anos, no mesmo dia de dezembro. As lembranças o levam ao passado, reacendendo o sentimento mantido em fogo brando que continuou aquecendo a vida. O final de tarde do verão sonolento era para ter sido como os outros, de apreensão e risco calculado. Para um instante para observar o homem gesticulando do outro lado da entrada envidraçada do imponente edifício. As palavras são inaudíveis. Sente o coração tremer, invadido por uma lufada de desesperança. Apressa o passo e se mistura à multidão que inunda a calçada depois do expediente. Ainda faltam alguns minutos. Caminha pelo vão do museu. A luz esmaecida invade o espaço aberto. A sensação de liberdade confunde-se com o suspiro de melancolia do anoitecer. Sente o calor morno dos últimos raios do sol resvalar em sua nuca como o roçar de lábios que se despedem. Espera alguns instantes até os carros pararem no cruzamento, diante do sinal vermelho. Sim, ele está no ponto de ônibus, do outro lado da avenida.
Antes de colocar o pé no asfalto, instante que parece ainda se estender para além do espanto, refletido no brilho claudicante do olhar, e do medo, reverberando nas entranhas e inundando as veias de líquido corrosivo, quando as mãos se crispam no bolso para impedir o corpo de se mover adiante, de dar mais um passo, viu os agentes da repressão lançando-se sobre Bruno, agarrando-o pelo braço, dando-lhe socos no rosto, algemando-o, empurrando-o para o porta-malas e saindo em disparada.
Os dias seguintes são de angústia e inquietação. Confina-se num apartamento no centro, seguindo regras de segurança. Permanece incomunicável por alguns dias, saindo apenas no final da tarde para comprar jornal. Depara-se com a foto do rosto desfigurado do amigo. Transtornado pela dor, decide vingá-lo, antes de dar cabo da própria vida.
Passados tantos anos, o olhar enternecido lê os versos estampados na parede ao lado das escadas que ligam a rua tranquila à agitada via que corta o bairro. O poeta pergunta: “Passarinho, me conta, o que leva aí contigo”? Responde: “Levo o tempo que passou”. Ah! O tempo!
Sente uma paz de verão adormecido invadindo seu corpo como uma maré. Aprendeu a conviver com o silêncio. As palavras são pronunciadas e ouvidas com a volúpia do instante em que nascem e morrem, exceto aquelas eternizadas nas páginas dos livros. Seus olhos viram e se apaixonaram pela beleza. Ela ainda o consome, como a chama de uma vela acesa. Senta-se no banco do ponto ônibus e olha devagar e demoradamente para o imponente prédio do museu que parece suspenso no ar. Imagina as obras de arte flutuando sobre os suportes de acrílico. Retira o livro de páginas amareladas do bolso e lê a última frase: “… para que me sentisse menos só, faltava-me desejar que houvesse muito público no dia de minha execução e que os expectadores me recebessem com gritos de ódio”.