A imagem do pai, naquele dia decisivo de sua vida, volta nas lembranças como exemplo de teimosia e obstinação. Lá está ele, na calçada ao fundo da igreja matriz, inquieto, à espera dos participantes da reunião. Malvestido, o então sitiante pouco lembra o poderoso sócio da pujante Expansão Mercantil Minas-São Paulo. Ainda não tem certeza sobre a maioria dos votos. Aguarda até o último instante para entrar na casa paroquial. É recebido com silêncio e olhar frio de parte dos presentes, representantes de famílias tradicionais que sempre desfrutaram de poder e mando em Santana. Reprovam sua insistência, por não conhecer o próprio lugar. O carcamano está indo muito longe em suas pretensões.
Enfrenta-os com o olhar penetrante e postura altiva, de quem não desiste diante do obstáculo, como fizera tantas vezes na vida. Cumprimenta os demais com o meneio de cabeça. O vigário toma a palavra. “Boa tarde a todos, a quem agradeço em nome das autoridades pela presença nesta reunião. Espero que cheguemos a bom termo no assunto que diz respeito ao futuro da cidade. O bem comum deve estar acima das pretensões e vaidades pessoais. Passo a palavra para o representante do prefeito, impedido de falar por estar afônico”. Leonardo o observa de forma desafiadora. Ele se encolhe na poltrona, enxuga o suor no rosto tenso e vermelho, como pimentão. O secretário, que há mais de duas décadas administra a cidade no lugar de mandatários ineptos, olha para os participantes e inicia a fala mansa. “Como manda a tradição e prescreve a lei, o mandato do prefeito é de quatro anos. Só deve ser substituído em situação de ausência ou de incapacidade permanente, o que não é o caso”. É interrompido por Leonardo. “Tradição e lei são uma coisa, acordo político é outra. Não preciso lembrar aos presentes que minha intenção era concorrer com chapa própria. Este mesmo grupo aqui presente me pediu para desistir e entrar como vice na chapa única da situação, com o objetivo maior de impedir a vitória da oposição. O acordo feito na época é de que o companheiro de chapa e atual prefeito renunciaria a meu favor no meio do mandato. Descumprir o acordo é traição”.
Constrangidos, permanecem em silêncio, o mais pusilânime. O secretário volta-se para o prefeito, que segura a tosse seca com o lenço, e reafirma com voz pastosa sua subserviência. “Mas não temos nada documentado e assinado em relação a esse acordo. O senhor tem condições de concorrer e ganhar, com amplo apoio, as próximas eleições. Seria a continuidade perfeita e tranquila do nosso projeto político. ” É novamente interrompido. “Para pessoas honradas, vale a palavra. Para aqueles que há muito tempo não sabem o que isto significa, só me resta o recurso de tornar públicos os casos de corrupção da atual administração. ” Diante da ameaça, inesperada por vir de alguém que se recusou a fazer parte do conluio, cedem a contragosto. Dias de transtorno virão, pressentem.
Depois da transmissão do cargo, numa cerimônia singela e sem publicidade, um dos primeiros atos do novo prefeito foi demitir o secretário e contratar outro, de sua confiança. Reúne-se com os funcionários, expõe a linha de trabalho e expectativas em relação ao desempenho dos servidores. Em conversa reservada, demite sumariamente o responsável pelo caixa. Agenda para a semana seguinte encontros com os Secretários Estaduais de Educação e Saúde. Do primeiro, consegue apoio ao projeto de estadualização do curso ginasial; do segundo, informações preciosas sobre recursos repassados à Associação Beneficente São José para finalizar a construção e equipar o hospital que ainda falta à cidade. De volta a Santana, convoca a presidente da Associação para uma conversa. Apresenta-lhe o documento com a relação de repasse de verbas estaduais, exige a prestação de contas e dá o prazo de dois meses para inaugurar a obra. Arregala os olhos, tropeça nas palavras, desnorteada: “Suas ordens serão cumpridas, Senhor Prefeito”. Reúne-se com os vereadores, apresenta em termos gerais o projeto para o mandato tampão e solicita a proposta de transferência do colégio municipal para a rede estadual. A aprovação deverá acontecer nos próximos meses, informa.
As primeiras medidas de impacto romperam o pacto político e eliminaram o que restava de mando dos velhos coronéis na política local. O desmonte da antiga e extensa trama de troca de favores, subsídios e apropriação indevida de recursos públicos causou espécie. Não se fala de outra coisa. “O cara tem culhão. Acabou com a roubalheira”, afirma o recém-chegado à rodinha que se forma na praça. “Ninguém imaginava que pudesse enfrentar os poderosos. Me fez lembrar o interventor, o Dr. Otto”, lembra outro. “Não conhece o ninho de cobras onde está metendo a mão”, pondera o mais incrédulo.
Os mais afetados pelas medidas entram em pânico. “Ai meu Deus! Estamos num mato sem cachorro. Gastamos a maior parte da verba com suas toaletes e festas extravagantes”, diz enfiando nervosamente os dedos na cabeleira crespa e repuxando nervosamente os lábios. “Agora, só você para dar um jeito”, suplica em desconsolo para a filha. Responde com ironia: “Vocês arruinaram a família com a má administração da fazenda. Não fosse a muamba que tanto criticam, estaríamos na pobreza. Não temos outra saída, senão incrementar as relações com Assunção”. Na sala de estar da ala do educandário reservada à família, interroga o marido: “O que será de nós sem os subsídios da prefeitura? Para onde iremos, se tivermos que deixar o colégio? Cairemos na miséria”. Tenta manter o equilíbrio. “Calma, nem tudo está perdido. Podemos manter o pensionato. Voltarei a dar aulas. Nossos filhos seguirão carreira no magistério, falta pouco para se formarem. E logo desposarão herdeiras de respeitável fortuna. Nosso plano deu certo, valeu a pena ter saído dos Gerais. ”
Nos meses que se seguem, o novo prefeito continua impondo o ritmo elogiado por uns e reprovado por outros, especialmente os funcionários acostumados ao ócio. Às seis horas da manhã, encontra-se com a equipe de manutenção de ruas e estradas e distribui as tarefas. Costuma chegar de surpresa aos trechos das vias que demandam trabalho mais cuidadoso de compactação e de cobertura de cascalhos. Revitaliza as escolas rurais. Inaugura o hospital, três meses depois de ter assumido a administração. Cria o Conselho de Desenvolvimento Municipal, com a participação de técnicos e pessoas de bom senso. Inaugura a biblioteca pública. Com a assistência do engenheiro agrônomo da ACAR, desenvolve a política de incentivo à agricultura e à pecuária, conferindo novo impulso à economia local. Reabre o Posto de Saúde, com a contratação de novo médico. Consegue transferir o curso ginasial para a rede estadual, agora gratuito e de melhor qualidade. Usa o concreto para pavimentar o trecho da avenida, dividida ao meio pelo canteiro de palmeiras imperiais, que liga o centro à praça da igreja de Santo Ambrósio. Investe na melhoria dos distritos. Consegue a extensão dos serviços de tratamento e distribuição de água da recém-criada Copasa para o município. Negocia mais uma entrada para a rodovia federal que ligará Santana às cidades da região. Arregaça as mangas e participa diretamente da construção do parquinho para crianças, na pracinha ao lado do antigo grupo escolar. Garante, assim, que seja aberto na manhã do Natal. Elege o sucessor. Sua administração, de apenas dois anos, fica conhecida como a “Era Nardão”, em alusão às realizações, ao combate à corrupção, sem deixar de ser uma crítica carinhosa ao jeito impetuoso e autoritário de administrar a cidade. Ampliou o número de admiradores, do mesmo modo como alimentou rancores e amealhou inimizades.
À véspera de entregar o cargo, senta-se à sombra do frondoso pé de jacarandá, como costumava fazer quando criança, ao lado do pai, na pausa para o almoço. É tomado pela emoção. Relembra os principais momentos de sua trajetória como uma sucessão de êxitos e fracassos na busca por encontrar seu lugar no mundo. O garoto hostilizado pelo estigma de imigrante, numa sociedade fechada em torno do grupo restrito de senhores da terra, escalara todos os degraus de ascensão social e das relações de poder. Na manhã seguinte, voltará a ser um cidadão comum. Entre tantas experiências que mudaram o rumo de sua vida, as convicções continuam inabaláveis. Venceu pelo trabalho e mérito. Deixa para os filhos e gerações futuras o nome honrado como principal legado. Santana do Indaiá, como uma bolinha de gude, ficou pequena na palma de sua mão.
Lindo o último Conto. Fiquei mto emocionada.