Senta-se no banco da praça. Está perplexo, sem entender o que está acontecendo. O mundo está fora do lugar. Com certeza é o mesmo local, mas a praça é a de outros tempos, com as aleias cobertas de pedrinhas britadas, os canteiros cercados por buchinhas primorosamente aparadas e os bancos de cimento, com os nomes dos benfeitores gravados no encosto, cobertos por ramagens de primavera. Fica em silêncio por alguns instantes, tentando botar ordem nas ideias. Contempla, acima de sua cabeça, as flores vermelhas, abóbora e lilás iluminadas pela luz da manhã. Os raios do sol tracejam em suas bordas um fio reluzente, de duração efêmera.
Olha para os próprios pés e constata que os sapatos não são aqueles que calçou, antes de sair de casa. Eram de anos passados, como suas roupas. Visivelmente incomodado, levanta-se e caminha em direção à pequena fonte. Ouve o burburinho da água jorrando da boca do felino, criando pequenas ondas concêntricas na superfície translúcida do chafariz. Molha as mãos, o rosto e os cabelos como se quisesse se despertar da miragem. Lembra-se dos momentos em que ali parava por alguns instantes para se esquecer do tempo. Observa a imagem tremulante refletida no espelho d’água e não se reconhece.
Aturdido, volta a sentar-se no banco, à espera de mais um pouco de tempo, o suficiente para reequilibrar o pensamento, botar a vida no lugar, deixar passar o mal-estar passageiro, imagina. Talvez algo esteja perturbando sua visão ou não tenha ainda saído de casa e estivesse apenas sonhando. Intrigado, ouve o conhecido ruído de passadas esmagando as pedrinhas britadas sob a sola dos sapatos. Ele se aproxima e senta-se ao seu lado. Não acredita no que está vendo. O rosto, as mãos, as roupas, os sapatos são idênticos aos seus, aos da pessoa que estava para sair de casa. Até os cabelos, que começam a ficar grisalhos. “Quem é você? O que quer de mim”, pergunta com a voz hesitante. “Não preciso responder o que você já sabe. ” “Diga-me que tudo isso não passa de um pesadelo ou de uma brincadeira de mau gosto”, suplica. “Você ainda não se deu conta? ”, pergunta ao mostrar o relógio que tira do bolso. “Mira, cada minuto a mais é um a menos. O seu tempo está contado. ” Entrega-lhe uma folha arrancada do calendário, dobrada duas vezes.
A esposa abre os presentes que ele trouxe da última vigem a São Paulo. Retira da caixa o vestido de seda amarelo ocre, de decote redondo, mangas compridas, cinturado e de saia longa, volumosa. Ainda não sabe por quê resolveu antecipar seu pedido, bem mais modesto, diga-se de passagem. Uma echarpe adamascada, dividida em duas cores, azul safira e cor de âmbar, com barrado azul claro, complementa a toalete. Volta-se para o marido e lhe dá um beijo no rosto. “É tudo tão lindo, como se você tivesse adivinhado meu sonho! No entanto, imaginava algo mais simples. Obrigada. ” Sorri para ela, sem o brilho costumeiro do olhar. Seus olhos parecem duas nascentes de melancolia, cercadas de areia escura. Senta-se ao seu lado e pega o pequeno pacote que havia deixado sobre o tampo de vidro da mesinha de centro. Está curiosa, não consegue imaginar seu conteúdo. Abre cuidadosamente o papel sedoso, depois de desfazer o laço da fita pastel, de brilho discreto. O estojo tem o acabamento de luxo próprio da marca de uma das mais exclusivas joalherias do país. Seu semblante vai se tornando sério, sem compreender o significado do gesto tão extravagante. Sobre o fundo escuro e aveludado, reluzem a corrente de ouro branco com um pingente e dois brincos de água marinha. Não sabe o que dizer. Olha para ele, ainda incrédula e balbucia: “Deve ter custado uma fortuna! Onde você está com a cabeça? ”. “Não custou nada, comparado ao meu devaneio”, responde.
Dá os últimos retoques nos lábios ressaltados pelo batom vermelho cereja. Enrola a echarpe na cabeça, emoldurando o rosto com a parte azul, deixando à mostra o reluzente brinco de água marinha. O elaborado nó acima da cabeça deixa pender sobre os ombros descobertos a parte do xale dourado e levemente pregueado, com o barrado azul em tom mais claro. O decote generoso do pesado vestido de seda expõe o colo alvo onde reluz o pingente. Senta-se no tamborete e aguarda as instruções do marido. A parede ao fundo havia sido revestida com um tecido escuro para ressaltar a imagem da esposa na plenitude de sua beleza. Pede para o filho movimentar o candelabro com as velas acesas, única luz reinante no ambiente, até conseguir o efeito desejado sobre o objeto prestes a ser capturado pela lente especial de sua câmara Nikon. O resultado, revelado num laboratório de São Paulo, deixa para a família e as gerações futuras de Santana uma cópia sui generis da obra de arte atemporal.
Os olhos refletidos no espelho transmitem o anseio diante do inevitável, o medo do desconhecido, a angústia pela travessia não preparada, tão precoce como inapelável. O tempo, cada vez mais escasso, segue o batido ritmado do coração, cada vez mais inquieto. Toca a íris projetada na superfície laminada, em busca de uma passagem secreta para o espaço recôndito da alma, à procura do antídoto para sua dor e do fio de luz para sua desesperança. Ah, o tempo! Por alguns segundos, um lapso que parece condensar toda uma vida, ele fica suspenso, como o grito de desespero paralisado na sua garganta. Então, as pálpebras se movem, trazendo-o de volta à vida. Aos poucos, duas lágrimas miúdas transbordam para os cílios, tremulam sobre os fios arqueados e os fazem vergar, deixando nas faces o traçado de uma vereda incerta. Não sabe por quanto tempo ficou assim, imóvel. Dos olhos vazados, como se não fossem os seus, jorram aos borbotões dois rios volumosos. Despencam pelo paredão do despenhadeiro até desaparecerem numa cortina de névoa.
Seu último dia está sendo comemorado com um banquete. Estão todos reunidos ao redor da enorme mesa que mandou colocar na área da churrasqueira, a mulher, os filhos, a irmã e o cunhado, os sobrinhos e a mãe. Comprou carne do melhor corte, vinho importado e pediu à mulher para preparar uma mesa farta. A conversa ruidosa é interrompida com o insistente toque do talher na taça de cristal. Os olhares dirigem-se ao anfitrião que diz não pretender fazer um discurso, mas revelar um segredo. A concentração toma conta do ambiente. Aos poucos, a apreensão aumenta diante do silêncio perturbador, enquanto seus olhos perscrutam cada um deles, num giro sem pressa.
Perde a noção do tempo. Ah, o tempo! Não imaginava que tivesse tantas dobras, nem que se confundisse com o sopro do universo. A mesa coberta por uma toalha de linho foi transportada para o topo da duna de areia branca, parecida com aquelas banhadas por lagoas de águas mornas e transparentes que conheceram na memorável viagem a uma remota região do Nordeste. Observa a esposa descendo devagar a encosta. Os raios do sol inclemente reverberam na seda dourada do seu vestido longo, que deixa nas areias escaldantes um rastro insólito. Permanece sozinho na ponta da mesa e contempla a paisagem surreal. O cacho de uvas cai de uma de suas bordas, enquanto as nêsperas flutuam no ar como naves espaciais. No horizonte, um traçado de luz se abre para o infinito.
Ouve encabulada a amiga contar sua história. “Ele deixou tudo organizado, as contas pagas, o testamento assinado, os documentos separados em pastas, um caderno com orientação sobre aplicações financeiras, contratos firmados e transações efetuadas pelo escritório. Deixou também um diário, onde relembra a infância no sítio dos pais na Divisa, a mudança da família para Santana, os anos de estudo para se formar em Direito, os primeiros trabalhos no seu escritório de contabilidade e advocacia, os planos para o futuro. Junto encontrei esta folha arrancada de um calendário, com o dia marcado de sua morte. ”
Quadro – O Banquete, Henrique Santtana, 1988. Acervo: Alex Sgreccia.
Fotografia – Alex Sgreccia, direitos autorais reservados.