Norma
Prepara-se para ir para a sede da multinacional onde trabalha. Não foi difícil conseguir emprego como auxiliar de escritório, um cargo abaixo ao das secretárias. Bastou abrir o sorriso e conversar descontraidamente com o chefe do departamento. Dá uma retocada no batom, passa os dedos nas sobrancelhas levemente arqueadas, prende o cabelo num rabo de cavalo. Olha-se novamente no espelho. Os traços são delicados e o rosto perfeito. Os olhos negros reluzem por um instante, revelando as chamas que carrega dentro de si. Sabe que pertence ao mundo das sombras.
Entra no quarto para se despedir do marido enfermo. “Toma os remédios. Isso, levanta um pouco o corpo e toma a água devagar, assim. Logo Dona Sebastiana chega para cuidar de você. Deixei a sopa preparada. Talvez tenha que chegar mais tarde hoje, o serviço está acumulado na seção”. Beija-o no rosto, esforça-se para conter com um sorriso o nojo daquele bafo cálido e hircoso, não presta muita atenção nas palavras enroladas de quem está perdendo o controle da fala e nem se incomoda mais com seu olhar esgazeado, sobrecarregado de cobre, que prenuncia a morte.
Desce as escadas sujas do prédio de quatro andares, cuja pesada porta de ferro enferrujado fica sempre aberta. Caminha apressada pelas ruas do bairro, sem olhar para os lados, ouvindo o som ritmado do salto do sapato na calçada. Passa a mão no ventre onde já são visíveis os sinais da gravidez. Chega ao ponto de ônibus e aguarda até passar um menos apinhado. Não vê a hora de sair da miséria, desfrutar de outro padrão de vida, ter o próprio carro, quem sabe? Chegará lá, sabe disso. Falta pouco para se livrar do estorvo. Desta vez, saberá explorar a beleza para conquistar o que quer e merece.
As horas são intermináveis e o trabalho repetitivo, enfadonho. Já usou todas os subterfúgios para interromper o que está fazendo para ir ao banheiro ou tomar um cafezinho. Ainda tem que datilografar uma pilha de documentos, abrir novas pastas, organizar o arquivo. Começa a sentir certa dificuldade para se agachar e manipular as pastas nas gavetas inferiores. Faz de conta que não o vê passar pela seção para conversar com o coordenador. É o sinal de que pode esperá-lo no local combinado, depois do expediente.
Escova cuidadosamente os dentes, depois de usar o fio dental. Penteia novamente os cabelos, retoca a maquiagem, abre os primeiros botões da blusa, deixa à mostra os sutiãs de renda preta e borrifa rapidamente o peito com o perfume francês que ganhou de presente. Abotoa novamente a blusa, olha-se no espelho. Fica contente com a imagem nele refletida e esboça um sorriso traiçoeiro. Sai rapidamente do banheiro, despede-se dos colegas e corre para o elevador.
Caminha alguns quarteirões pela avenida, misturando-se ao fluxo de mulheres bem vestidas e homens engravatados que acabam de deixar o local de trabalho. São rostos de semblante compenetrado e olhar perdido na massa humana que se desloca no ritmo acelerado do final do dia. As luzes dos postes de metal escuro nas calçadas e nos canteiros centrais da avenida são acesas, amalgamando-se com o lusco fusco impreciso e fugaz em que a luz do dia cede vagarosamente ao mistério da noite. Sente-se mais segura nesse universo de sombras, a ele pertence sua alma. Nele, não há lugar para o remorso nem para a culpa.
Entra no bar e escolhe uma mesa mais discreta, ao fundo. Acende o cigarro e pede um copo d’água. Olha para as mãos e percebe que precisa retocar o esmalte das unhas. Não teve tempo de descer ao salão no andar térreo do prédio no final de semana. Espera que não repare neste detalhe. Passados alguns minutos, ele chega sorrindo, enquanto caminha em sua direção. “Vai pedir alguma coisa para tomar? ”, pergunta depois do beijo no rosto. “Acho que não, temos coisas mais interessantes para fazer”, diz enquanto esboça um ar cínico. “Deixa que eu pago a conta”. Saem abraçados em direção ao carro estacionado um pouco mais adiante.
“Onde vamos dessa vez, a um motel? ” “Penso que não”, ele responde. “Nada mais estimulante do que transar na escuridão do parque, no meio de putas e travestis. Este mundo também nos pertence”. Estaciona o carro debaixo de uma árvore, apaga as luzes e rebaixa o encosto do banco. Ele a abraça, puxando-a para junto de si. Beija-a longamente, antes de sugar-lhe os seios. Ela se entrega ao ritual de corpos se contorcendo no espaço exíguo e desconfortável, enquanto segura com volúpia seu membro rijo até senti-lo inteiro dentro de si, em movimento frenético. O beijo prolongado e o estremecer de músculos e nervos esgota-se em lágrimas em suas entranhas e em seu rosto.
Ele a deixa a dois quarteirões de casa, na rua de cima. Sobe apressada e cabisbaixa as escadas, abre a porta da sala em penumbra, vai direto para o banheiro. Deixa a água do chuveiro escorrer lenta e prazerosamente pelo corpo. Enxuga rapidamente os cabelos, veste os pijamas. Mira-se no espelho e sente a luz do olhar sendo tragada pela escuridão das sombras em redemoinho. Não sabe mais quem é. Entra no quarto e percebe que ele continua acordado. Deita-se ao seu lado, beija seu rosto e diz: “Boa noite, meu amor! ”
“Tem certeza do que está propondo? ” Não titubeia: “Claro, ele precisa de algo que lhe dê alegria e esperança, um motivo para viver! ” “Mas você sabe que a doença não tem volta, seu tempo de vida será curto. O médico já preveniu a família”. “Eu sei, quanto antes tentarmos melhor. Ele ainda terá a chance de conhecer a criança que imaginará ser seu filho. Será um de seus últimos momentos de felicidade”. Precisa ir além das palavras. Toca de leve no ombro do cunhado, deixa a mão deslizar suavemente por seu pescoço, enquanto o devora com os olhos. Ele a olha com espanto, para deixar-se levar pelo calor que contamina o sangue, invade os vasos sanguíneos, retesa os músculos e o faz apertá-la contra si, irremediavelmente, percorrer seu corpo com mãos de puro anseio, sentir a maciez da pele aveludada arrepiar-se em pequenos frêmitos, a respiração cada vez mais ofegante de lábios entreabertos, a entrega ansiada e dissoluta, o grunhir de loba selvagem e de cadela no cio, o estertor dilacerando entranhas e as unhas avergoando a pele, o gemido de fêmea desprotegida e lânguida, encolhida em lençóis de linho.
Nos dias seguintes, simulou por diversas vezes a relação com o marido, fingindo prazer. Ele não estava mais em condições de discernir se, de fato, o ato havia se consumado. Submeteu-se a esse gesto penoso para justificar o fruto que sentia carregar no ventre. O filho do outro, o bastardo. Precisou da narrativa, o movimento desesperado de compaixão, para encobrir o verdadeiro propósito que a uniu ao cunhado numa cumplicidade sórdida. Ambos se desejavam de longa data, só não haviam encontrado ainda a trama que justificasse a traição que manteriam no mais absoluto segredo, dissimulada pelo distanciamento calculado. Os olhares furtivos, carregados de desejo, no entanto, não passaram despercebidos para pessoas mais próximas. Chegaram a despertar o ciúme ostensivo da cunhada, a mulher do outro.
O atraso da menstruação, náuseas esporádicas e idas mais frequentes ao banheiro para urinar indicavam estar grávida. Esperou por outros sintomas, antes de fazer o teste. O aumento de volume dos seios, cansaço, tonturas e vermelhidão nas palmas das mãos pareciam indicar não haver dúvidas. O resultado do primeiro teste confirmou a suspeita. Precisaram reunir coragem, ela não sabe ainda de onde, para anunciar ao marido que seria pai. Ele os abraçou comovido e mal conseguiu balbuciar algumas palavras de contentamento. Olhou demoradamente para ela, puxou-a para junto de si e encostou o rosto no seu ventre, parecendo querer ouvir as pulsações que brotavam lá de dentro. Ficou assim por alguns instantes, enternecido, como se a felicidade rondasse por ali, iluminando seus olhos.
Continuou, dia após dia, a rotina de ida e volta do trabalho, enquanto sentia o incômodo de pegar o ônibus lotado com a barriga cada vez mais volumosa. Depois de passar a catraca, geralmente alguém lhe oferecia o assento, gesto agradecido com um sorriso discreto. As saídas com antigo amante tornaram-se mais raras, o sexo mais complicado. Num daqueles finais de tarde, a conversa terminou no próprio bar. Ele anunciou que se casaria em breve, motivo para encerrarem o relacionamento. Tinha ternas lembranças e as manteria em segredo, em algum lugar do coração. Ela o ouviu em silêncio e observou seu rosto aparentemente desprovido de emoção ao se levantar. Recusou o beijo de despedida e não o acompanhou com olhar ao deixar o recinto. Pediu mais uma dose conhaque. Estava melancolicamente só, distante daqueles a quem se entregara em busca de refúgio para o desconsolo. Não derramaria uma lágrima, voltaria para casa, para o marido enfermo.