Não consegue pegar no sono. Vira-se com cuidado para conter a dor irradiando-se pela rede de vasos sanguíneos, corrosiva, provocando o gemido abafado. As mãos trêmulas tateiam o lençol e a colcha de algodão no pé do leito frio e se cobre. Aos poucos, a onda vagarosa de calor lambe seu corpo. A carícia arrepia a pele e faz a carne tremer de consolo. Os lábios roçam a fronha do travesseiro e umedecem de desejo a tessitura de milhares fios trançados, sobrepostos, atados um ao outro, indissolúveis, até se esgarçarem e dissolverem o cheiro do último encontro nas bordas do tempo. Ouve os ruídos vindos do lado de fora. O roncar agressivo de motos invade o silêncio para esmorecer, ao longe e aos poucos, em lamento. Fachos estreitos e tremulantes de luz atravessam as dobras rendilhadas da persiana e projetam no teto a mandala de formas e sombras em movimento. A dor miúda, contínua, recorda ser inútil resistir. Por fim, adormece como se estivesse bêbado.
Ali, no limiar da consciência, quando ela se esgueira de lado nas pálpebras que teimam em não se fechar, lembra-se das noites dos tempos de criança, quando o fornecimento de energia elétrica era costumeiramente interrompido naquela região montanhosa do Sul de Minas. Os últimos deveres da escola são feitos à luz de vela. Sai sorrateiramente para o alpendre. Senta-se no degrau de cimento, cruza os braços sobre as pernas para se aquecer e contempla a vastidão da noite. A luz difusa da lua traça o contorno da colina no horizonte. O céu divide-se neste espaço salpicado de estrelas e o manto negro e amedrontador onde algumas delas cintilam solitárias e milhões de outras vagam em nuvens densas, de brilho espumoso. Sente-se atraído pelo transe do universo. Ouve o barulho da chave girando no interior da fechadura e a porta sendo aberta. A ordem do pai o traz de volta do devaneio. “Está na hora de entrar”. “Fica um pouco comigo”, pede. O coração se contrai ao sentir ele sentar-se ao seu lado, pegar sua mão e permanecer em silêncio por longos minutos. Recosta a cabeça no seu braço enquanto a vida pulsa na ponta dos dedos, misteriosa e cálida.
Está terminando de preparar a salada, quando sente a lufada de ar frio atravessar o ambiente e sair pela janela. Arrepia-se. Ao se virar, percebe o vulto em pé, do outro lado da mesa. Encosta-se na bancada para manter o equilíbrio e não cair. Sem puxar a cadeira ou ser convidada, senta-se. Continua paralisado de terror. Os lábios tremem, gotas frias de suor brotam na testa e escorrem em filetes sinuosos pelo rosto. Não sabe quanto tempo permaneceu sem conseguir esboçar um pensamento, um movimento. Por fim, corta um pedaço da toalha de papel e enxuga o rosto. Sente o primeiro pulsar do sangue nas veias, o coração bater acelerado, o estômago enlaçado pela dor incômoda, a saliva amarga. “Veio me buscar, assim, de repente?” Observa a pele curtida, grudada nos ossos, pele e osso. As mãos longas permanecem coladas no tampo de vidro, os lábios escuros continuam imóveis, os olhos opacos observam o nada, solenes. Ouve o ruído quase indistinto de palavras flutuando no ar como um sussurro. “Teu caminho termina no cruzamento do muro de pedra.” A imagem do espectro tremula sob a visão embaçada pelas lágrimas e, como por encanto, atravessa a parede, deixando um rastro de ar espiralado e frio. Apalpa os braços com as mãos trêmulas. Permanece em silêncio por intermináveis minutos e conclui: achariam a estória inverossímil.
Continua confuso em relação ao caminho. Sente o bafejo gelado na nuca anunciando a vida esmorecendo-se num longo suspiro, a trilha onde começo e fim, separados pelo vagar das horas, finalmente se enlaçam, derradeiro abraço, temido e ansiado, langor de despedida dos dias, enternecimento de mãos acariciando as suas, pés roçando-se debaixo da mesa, palavras ternas sendo ditas, desta vez, verdadeiras: “Amo você”. O olhar se perde nas cores que emanam das telas, nêsperas flutuam no ar, ela adormece sobre a colcha salpicada de flores brancas, figuras talhadas na madeira cobrem-se de vestes cerimoniais tecidas por artesãos e ourives assírios, o garoto dedilha nas cordas do violão a canção do adeus sob o azul transparente do céu, os dias viram noites aquecidas pelo calor do corpo colado ao seu, o dia avança até o entardecer, momento de luzes fugazes, enganadoras, portões abertos do jardim das delícias, vielas iluminadas de angústia.
O bater das horas anuncia a passagem do tempo. Ah o muro de pedra…