Está imerso no ambiente difuso em que o sonho parece real, de olhos ainda fechados, momento de fronteiras imprecisas entre o onírico e o vivido, como se as cenas a que está assistindo se projetassem para fora da tela ou ele estivesse sendo envolvido por elas, tão vívidas, tão naturais, a ponto de sentir as batidas do coração, ouvir a própria respiração, ao dizer com entusiasmo: “É preciso entender o que é Minas, o significado de ser Minas”. Dirige-se ao grupo de italianos que visita o país. “Minas são essas montanhas solenes que nos observam na sua quietude. São também essas casinhas de paredes brancas, janelas e portas azul-escuro, erguidas em extensos gramados verdes ao pé da colina, recortados por trilhas estreitas e sinuosas. Minas é o silêncio pesado das onze horas de manhãs sem vento, quase agonia de tão intenso, quebrado pelo burburinho das águas do córrego. Minas é solidão”.
Observa o entardecer do alto da serra. A sequência de montanhas parece uma pintura de ondulações suaves, recortadas pela luz, em tons nuançados de verde, mais escuras as mais próximas, azuladas aquelas mais distantes cujo contorno se dilui no horizonte de cores e tons difusos, o azul-claro tornando-se róseo, depois amarelado, para finalmente adquirir a efervescência vulcânica do vermelho-cobre antes de ser tragado pela escuridão da noite.
Nas encostas da serra, o vilarejo desaparece no breu. Aos poucos, a luz de um lampião ou de uma fogueira acende em algum ponto do vasto escuro, outra ali, outra mais à frente, até o veludo negro ficar coalhado de pontos cintilantes, como o manto de Nossa Senhora das Dores na procissão do Encontro. Na vastidão do firmamento, as estrelas surgem aos poucos, pequenas, resplandecentes, em sintonia com os pontos de luz na vertente da serra, juntando dois mundos, o que é tocado por seus pés, real e pulsante, e aquele do sonho, distante e misterioso. Minas é o milagre do simples.
O pensamento flutua entre os dois mundos sem fronteiras demarcadas nitidamente. Vai e volta, recusando-se permanecer num deles de forma definitiva, apesar de preferir o provisório, o incerto e ambíguo do sonho, por ser protegido da dor. Estaciona-se ali como estrangeiro, espaço difuso e sem peso, de onde observa a si mesmo transitando pelo tempo.
Acorda intrigado com o sonho que acabou de ter. Tem dúvidas se foi mesmo um sonho ou outra daquelas viagens pelo universo desconhecido e sem fronteiras nítidas, espaço e tempo paralelos que seu inconsciente alcança de forma misteriosa. Ainda não descobriu como se dá essa passagem. Embora desconfie das teorias fantásticas sobre o mundo, não consegue se desvencilhar da hipótese de que nas dobras do tempo haja a possibilidade migrar para “outro lugar noutro tempo”.
Caminha pelas ruas da cidade natal e surpreende-se com sua transformação. Onde antes era a movimentada avenida, depara-se com edificações imponentes, de pórticos sustentados por colunas brancas, fachadas com janelões pesados de madeira almofadada deixando antever o movimento de cortinas rendadas, grades de ferro batido protegendo jardins de folhagem desconhecida. Está tudo vazio, não encontra vivalma. O silêncio reverbera nos ouvidos, atordoa, impregnado de surpresa e espanto. No lugar da pracinha, perto da casa onde passou a infância, ergue-se uma colina de onde se descortina outra paisagem. Ruas e casas desapareceram, deram lugar ao bosque de arvoredo típico de regiões temperadas, amealhado de caminhos por onde ninguém passa.
A topografia acidentada da parte leste da cidade, dominada pela colina coberta de capim-gordura, que florescia na primavera, revestindo-a com o manto de coloração rosa- arroxeada, dá lugar a terras planas, recortadas pelo riacho de águas cristalinas. No horizonte, a elevação de pedras protege o remanso, antes de as águas despencarem pelo desfiladeiro, em cujas bordas casas de veraneio foram erguidas e agora encontram-se abandonadas. A brisa toca seu corpo e o faz tremer de perplexidade.
Do topo da serra tem uma vista panorâmica da região que no passado confundia-se com os tempos de criança. Mergulha em voo rasante por suas vertentes, plana sobre o vale onde erguia-se o bairro Bela Vista e só encontra casas desabitadas, um vilarejo fantasma onde antes a vida pulsava, alegre e simples. Faz o caminho de volta, tragado pelo redemoinho em que seu corpo rodopia envolto no cordão de prata, até acordar assustado. Levanta-se, toma um copo d’água e fala para si mesmo, tentando se aquietar: “Nada disso aconteceu, foi só mais um daqueles sonhos.”