MM, Madalena Montalvan ou simplesmente Mimi, a figura mais notável de Santana do Indaiá. Borda com linhas de seda e em ponto cheio as iniciais do próprio nome na estreita faixa que junta as duas partes do sutiã. Dá mais uma tragada e solta a baforada pelo canto da boca, como costuma fazer quando está concentrada. Estica a peça sobre o joelho e observa os detalhes. Coloca os óculos para não deixar passar nenhum defeito. Fica satisfeita. Apanha, num gesto lânguido, o cigarro do cinzeiro que seu pai diz ter trazido de Murano, dá mais uma tragada. Pressiona os dedos dos pés na coluna de madeira e constata não precisar de reparo o esmalte vermelho sangue das unhas. Ajeita as almofadas, o robe de chambre de seda e o corpo na poltrona propositalmente disposta perto da mureta do alpendre, ocultando-a do olhar de quem passa pela calçada. Os curiosos enxergam apenas parte das pernas colocadas para cima e os pés rosados, bafejados por nuvens encaracoladas de fumaça que logo desaparecem, carregadas pela brisa. Verdadeiro fetiche para aqueles que a desejam.
É interrompida com a chegada da empregada. “Dona Madalena, é assim que a senhora quer? ” Pede para ela mostrar mais de perto a carcaça dos galos, um cinza, de costas cobertas por penas escuras, brilhantes, e outro de plumagem totalmente negra. Examina se a limpeza interna foi feita como orientou: retirar carne e eliminar qualquer vestígio de vísceras, deixando à mostra as costelas. No peito só restou uma faixa de penas beirando o corte oval, depois que a lâmina afiada da faca extraiu a parte mais volumosa de carne, decepando junto as coxas e pernas das aves. “Deixe escorrer mais um pouco e leve ainda de manhã para o Seu Lazarino. Ele se encarregará de embalsamá-los”. A empregada franze o cenho e pensa com os botões: “Ela está ficando cada vez mais esquisita. Em que encruzilhada e para que santo vai botar essa encomenda? ”
Está se preparando para o costumeiro descanso depois do almoço quando ele entra nos aposentos. Toma todo o cuidado para não a contrariar. Escolhe as palavras e modula a voz melíflua: “Minha querida, precisamos conversar sobre as despesas. Não temos de onde mais tirar dinheiro para sustentar suas extravagâncias. Toda semana você compra tecidos caros na loja, além gastar com armarinho, sapatos novos e adornos. No mês passado, emprestei do fundo da Associação Beneficente, mas não posso recorrer à manobra novamente, tenho que prestar contas ao conselho fiscal”. Ela o fulmina com o olhar. “Minha função nesta casa é gastar e a sua pagar! Já economizo bastante, costurando meus próprios vestidos. Agora me deixa em paz! ” Como ele a irrita! Há muito tempo, vem enfiando a mão nos cofres da entidade. Até o mundo mineral sabe.
O casamento havia sido arranjado, não passou de conveniência. Fora abandonada pelo noivo, ao saber que estava grávida. Advogado de Ribeirão Preto, entre juras de amor e promessas de uma vida de fausto, a tinha comido nas mais diversas posições dentro de sua baratinha, no alto das Paineiras, aonde a levava para ver o pôr do sol. Os pais não viram outra saída para reparar a tragédia. Lembra-se com detalhes da noite de núpcias. Fez um enorme esforço para disfarçar o tédio. Entre os lençóis, sentiu-se como se estivesse palitando os dentes, enquanto fingia prazer. Quando tentou beijá-la, ofegante, ela o empurrou com o pé para fora da cama. Não teve mais dúvida de que havia se casado com um corno.
Depois do banho, avisa a empregada que vai até a farmácia tomar uma injeção contra enxaqueca. A dor continua insuportável. O expediente está por terminar. Entra apressada, ele tranca a porta e vira a placa: Fechado. Leva-a para a salinha de procedimentos de rotina. Beija-o com sofreguidão, enquanto levanta sua saia e a senta sobre a mesa. Sabe que não está usando calcinha. Abre a braguilha e dá seguidas estocadas, até ambos urrarem de orgasmo. Ajeita apressadamente a saia, apanha a bolsa e sai discretamente. Do outro lado da esquina, comentam: “É feia de cara, mas boa de bunda O farmacêutico está nadando de braçada”. “Também pudera, tem uma trolha enorme”! “Já experimentou? ”, pergunta rindo. “Está me estranhado, cara? É o que se diz à boca pequena. Eu, hein! ”
Na manhã seguinte, é a primeira a chegar à sapataria do Seu Cicillo. “Bom dia, Dona Madalena, em que posso ajudá-la”? “Não é nada muito especial, desta vez. Um serviço rápido, imagino”. Tira da sacola o par de sapatos pretos, de plataforma baixa e saltos altos e finos. “Uma verdadeira obra de arte”, pensa ao examiná-los por trás das lentes dos óculos de aros redondos. “Estão perfeitos, o que a senhora quer que eu faça”? “Quero que pinte as solas e a parte interna dos saltos de vermelho vibrante”. “Mas corremos o risco de estragar um produto tão fino”, comenta o sapateiro, fazendo um ar de apreensão. “O senhor saberá lidar com isso. Mando a empregada buscar no sábado de manhã”. Passa as mãos nas coxas e ajeita a saia colante que ressalta as nádegas levemente arredondadas, coloca os óculos escuros e deixa o local. “Tenha um bom dia, Seu Cicillo! ”
Mantém a porta trancada e não deixa o quarto de costura nem para as refeições. Trabalha freneticamente. Examina cuidadosamente os modelos nas páginas dos últimos exemplares de revistas de moda. Uma reportagem chamou sua atenção. Era sobre o jovem Hubert de Givenchy, que abrira recentemente a própria Maison, depois de uma auspiciosa carreira com estilistas famosos. Sua primeira coleção causou frisson entre comentaristas da alta costura. Observa os modelos com cuidado, imaginando o corte e o acabamento. Decide por um vestido preto, colante, com generoso decote e mangas cavadas, saia abaixo dos joelhos. Dá mais uma tragada no cigarro. Do molde no papel ao acabamento final no manequim com suas medidas, gastará uns três dias.
No meio da semana, recebe a encomenda feita ao taxidermista. O trabalho está perfeito, as aves parecem ter vida. O interior das peças havia sido preenchido com algodão e fechado com feltro preto. Começa agora o seu trabalho: aplicar as penas raras que comprou, tempos atrás, numa casa especializada em São Paulo, e transformar os galos em belos exemplares de faisão, presos no alto chapéu negro de abas não tão largas. Um desafio e tanto, mas não impossível para sua imaginação e criatividade. Pondera ainda: “Essa caipirada de Santana está acostumada a comer gato por lebre”.
“Pedrinho, avise o motorista do papai que vou precisar do rabo de peixe no domingo, pontualmente, às nove e quarenta da manhã”. “Mas querida, você conhece seu pai melhor do que eu. Já me disse, mais de uma vez, que não vai mais bancar suas maluquices”. Olha para ele com menosprezo e responde apenas: “Vire-se! Ai de você, se o chauffeur não comparecer no horário marcado”!
Sábado à tarde, passa horas com compressas de rodelas de pepino sobre os olhos para atenuar as olheiras, antes de tomar um demorado banho de sais e lavar os cabelos com shampoo de babosa. Ouve música clássica, enquanto dá os últimos retoques no esmalte vermelho das unhas dos pés e das mãos. Antes de se deitar, um pouco mais cedo do que de costume, confere detalhadamente a toalete e os adereços dispostos no closet. Passa levemente o perfume importado no rosto, atrás das orelhas, nos punhos e entre os seios. Puxa os lençóis de algodão leve e apaga as luzes do abajur.
Às nove horas e quarenta minutos, desce os degraus da escada. O chauffeur abre a porta de trás do reluzente conversível negro, de estofamento de couro vermelho. Atravessa a passos calculados o passeio e entra no carro, segurando a aba do chapéu com a ponta dos dedos da mão enluvada. Pede que suba devagar a avenida. Respira fundo e se prepara para mais um espetáculo.
As pessoas na rua ou nas janelas das casas observam com admiração e espanto o rabo de peixe conduzindo a solitária passageira. Não sabem no que prestar mais atenção, nos detalhes da extravagante toalete da Mimi ou no veículo mais chique da cidade. O automóvel chega ao final da avenida, dá a volta ao redor da praça e é estacionado no extremo oposto à igreja. Ela estende a mão para o motorista e deixa o carro. Caminha a passos miúdos pela aleia principal e contorna o coreto, enquanto sente o resvalar das penas de faisão nos ombros. As mulheres de Santana e de cidades vizinhas comentam admiradas: “Nossa, nunca vi uma mulher tão elegante”! “Notaram o vermelho das solas dos sapatos enquanto ela caminha? Que efeito mais lindo e original”. “E que chapéu divino! Parece um sonho”. Os homens não poupam comentários irônicos: “Só uma galinha como ela carrega dois galos na cabeça! ” “Ainda vou comer esse rabo, com pena ou sem pena”, comenta um deles, provocando riso com o trocadilho.
Mimi sobe os degraus e para diante da pesada porta do templo. Ao som das badaladas do relógio marcando dez horas, inicia a lenta caminhada pelo corredor central como se estivesse andando sobre um tapete vermelho. Fixa o olhar, confiante e sereno, nos detalhes resplandecentes do altar-mor, flutua sobre a passarela a passos de gazela, sob a luz dos holofotes e da chuva de flashes. Os aplausos entusiásticos a impedem de ouvir os comentários das mulheres de véu preto e fitas vermelhas do Sagrado Coração de Jesus sobre o peito: “Mas que absurdo! Está confundindo o templo do Senhor com uma passarela”! “Não veio para participar da missa, mas para seduzir os homens, provocá-los com seu despudor”.
O sacerdote dirige-lhe o olhar de desaprovação. Não sabe o que fazer diante do ar severo e indignado das mulheres e do riso irônico dos homens. Empalidece, sente o suor frio avolumando-se na testa, as mãos tremem com o peso do missal. É socorrido pelos acordes do órgão, anunciando o início do santo ofício. Mimi permanece impassível durante toda a cerimônia, solitária no primeiro banco, reservado ao exercício de sua glória, que imagina igual àquela dos santos entronados nos altares ao seu redor.
Na saída, coloca os óculos de sol e acende, num gesto estudado, o cigarro colocado na piteira. Caminha de volta, como uma diva, para o conversível que a espera estacionado no outro extremo da praça. Ao chegar à casa do Comendador um pouco antes do almoço, o melhor fotógrafo de Águas Serenas a aguarda com o aparato de câmaras e equipamentos de iluminação para a sessão contratada de fotos. Dirige-se à biblioteca, um lugar reservado da residência, e pede para não serem incomodados. Diante dos refletores e lentes, Mimi não se faz de rogada.
Senta-se na cadeira estilo Viena, coloca o braço esquerdo para trás e apoia o outro no espaldar encurvado do elegante móvel, segurando o queixo com a mão. As costas descobertas pelo decote fazem uma leve curva em direção ao ombro desnudo, compondo com o pescoço delgado uma silhueta de equilíbrio sereno e, ao mesmo tempo, sedutor. As longas penas rajadas de um dos faisões caem em profusão e acariciam seus ombros e braço num movimento lascivo, traçando o desejo numa linha curva em direção à plumagem negra da outra ave no topo do chapéu. O olhar enigmático, ressaltado pelas sobrancelhas arqueadas, e os lábios carnudos, acentuados pelo batom em tom escuro, completam a imagem do mais puro fascínio.
Durante o almoço, enfrenta o olhar severo do Comendador, enquanto o irmão não pouca recriminação ao seu comportamento. “Mimi, você está usando o templo de Deus para fazer desfile de moda. Não percebe que suas vestes indecentes incitam os homens ao pecado? As mulheres piedosas e recatadas que frequentam a igreja têm reclamado insistentemente comigo, pedindo providências. Não sei mais o que fazer”. Ela pousa o talher e responde calmamente: “Você ainda acha que os fiéis vêm à missa para ouvir seu entediante sermão? Cada domingo, mais pessoas de Santana e de cidades vizinhas comparecem à missa das dez para assistirem à minha entrada na igreja e se deslumbrarem com a beleza que lhes ofereço com meus trajes e adereços. Desperto nelas os sentimentos mais enlevados. É assim que louvo a Deus, a quem me ofereço ao desfilar em sua passarela”. O irmão engasga, enquanto o pai permanece no mais absoluto silêncio. “Só Jesus na cruz para me socorrer”, pensa com ironia e sarcasmo, “não mereço um pai poderoso e avarento, um irmão padre e ranzinza, e um marido pobretão e brocha! ”
Fotografia – Irving Penn