Olho à distância o quadro pendurado na parede, ao lado do maravilhoso Sonho. Me lembro da melhor moldureira de Belo Horizonte ter escolhido uma moldura inglesa para esta aquarela, como se tivesse sido banhada a ouro velho. Brilha sobre o efeito da luz, deixando ranhuras mais escuras que conferem à obra a impressão de eras passadas, solenes e misteriosas. A estreita faixa da moldura interna, o passe-partout de dourado reluzente, sugere estarmos diante de algo precioso, atemporal.
A obra lembra imagens consagradas da Madona. No entanto, é diferente dos ícones bizantinos, assim como se distancia dos belos afrescos pré-renascentistas das paredes envelhecidas de templos e capelas da Toscana, por se aproximar de uma arte colonial, essa que junta as nações subjugadas pelos impérios espanhol e português. Há um traço comum na virgem que lembra as Madonas dos tetos das igrejas barrocas de Ouro Preto e aquelas da catedral de Cusco. Parece fundir raças, a escrava negra de nossas senzalas e as indígenas que habitam as encostas e vales da região andina. No entanto, não é uma, nem outra, sendo uma e outra na síntese que revela a Madona morena, de olhar melancólico, porque traduz a tristeza e a dor do mundo. Quanta informação contida numa única imagem. Coisa de artista, mas daquele que é grande, não apenas por ser incomum, mas por conseguir transformar o singular em universal.
Outros detalhes me deixam em estado de admiração e espanto. No lugar da coroa cravejada de pedras preciosas, o cocar de penas rajadas. Quanta ousadia e singularidade! As bordas do manto escarlate, salpicado de flores, deixam à vista a túnica florida, de cor nuançada pela luz. Nas mãos protegidas por punhos de esplendorosa renda espanhola, os ramos de ervas e flores usadas para embriagar a alma, em rituais ancestrais de cura e de comunicação com o sagrado, o invisível, o sopro infinito que nos aproxima das estrelas e do Sol, o deus do começo e do fim, da ira e da compaixão, dos mistérios indecifráveis, porque é deles que nasce a esperança, a ternura, a misericórdia, o sentimento de sermos pequenos, tão pequenos, que as lágrimas brotam de repente, anuviando os olhos.
A nuvem de flores em tons de azul, cercadas de delicadas folhas verdes, sobre a qual pousam os delicados pés calçados por tecidos bordados, faz a madona flutuar no vazio do branco, imaterial, etéreo.
As flores e ramagens, em movimento contínuo dentro da moldura quadrada que captura e protege a imagem do aqui e do agora, o mundo terreno, parecem advertir: “Não toque! O sagrado não te pertence, deve ser visto e venerado à distância”.
Então volto para a poltrona e contemplo novamente a imagem. Enternecido, agradeço o dia em que ganhei este precioso presente.
Madona
Aquarela de Vicente Roberto Sgreccia, 1986
Acervo de Alex Sgreccia
Fotos: Alex Sgreccia. Direitos autorais reservados.