Observa, de relance, a figura grudada na grade da cela de frente da cadeia. O rosto redondo, as mãos tesas, o olhar de desespero sob a touca branca, a boca escancarada, enorme, os gritos exasperantes: “Me tirem daqui! Vão me dar o chá da meia noite!” Apressa o passo. O coração se contrai de medo. Os gritos continuam perseguindo-o, cortando a manhã sem nuvens. É Lisota, a Louca. Olha para frente, na direção do vazio, a confluência da avenida poeirenta com a curva da rua calçada que circunda a igreja Matriz
Continua gritando: “Me tirem daqui!” Sem forças contra a dureza áspera das barras de ferro, deixa o corpo pesado cair devagar no chão imundo. As palavras rabiscadas nas paredes são incompreensíveis. Não se espanta com as manchas de sangue, escorço de corpos lacerados pelo relho, nem com os desenhos obscenos. Ouviu os guardas comentarem que será levada para o Juquiri.
As horas e os dias embaralham-se em sua cabeça. Onde está sua boneca? Quem a roubou? Grita: “Onde está minha filha?” Apalpa os seios imensos, sente o cheiro azedo do leite empapando a roupa. Fecha os olhos, não consegue mais reter as pálpebras pesadas. Anda devagar, arrastando as pernas volumosas, em direção à bica d’água. Enche os dois baldes de madeira e volta, com os mesmos passos lentos, em direção aos dois toneis sob a soleira da janela da cozinha. Repete o movimento, até a água derramar pelas bordas. É sua tarefa diária, além de lavar a roupa.
Cobre a careca luzidia, onde nunca nasceu um fio de cabelo, com a touca branca, deixando cair, sob as orelhas, as tranças de pano preto, feitas pela mãe para disfarçar sua feiura. Era motivo de troça dos moleques e olhares desconfiados das beatas – a aberração seria obra de mau agouro ou fruto do pecado, era criatura de Deus ou do demo? – que se benziam em cruz ao se cruzarem com ela, dizendo com voz miúda e lábios descarnados: “Deus me guarde e me livre, o mau olhado esconjuro!” “ O mau olhado esconjuro!”, repetiam.
No começo se assustou quando o viu sair da matinha enquanto ela estendia a roupa no quarador. Aproximou-se com riso matreiro e conversa caprichosa. Disse que só de perto se via como era bonita. Percebendo o relampejo no olhar incerto, cria ousadia. Encosta-se nela, apalpa seus seios. No começo, não gosta, acha estranho, depois cede. Com o tempo, sente crescer o volume da barriga gorda. Consegue disfarçar por alguns meses. Ao ser descoberto seu segredo, o pai retalha suas costas com o chicote. “Some da minha casa, cadela”, diz apontando a porteira no final da grota onde fica o sítio.
Passou a viver na rua, dormindo nos becos de Santana. Deu à luz à menina, ajudada pela parteira que a acolheu naquela noite de dor aguda. Passados alguns dias, depois de ter voltado para a rua, cava um buraco no chão e o enche de água para dar banho na criança. Joga-a para cima, enquanto diz rindo: “Vou te comer com feijão, meu leitão”. Assustada, Ismênia se aproxima e pede para ficar com a menina.
Depois de Lisota ter sido encaminhada para o manicômio, decide registrar a menina como filha de criação. Diz ao escrivão que os pais são desconhecidos. “E o nome?” Lembra-se do desejo da mãe e responde: “Maria de Lourdes das Lindas Flores”.
Texto – Alex Sgreccia
Aquarela – Vicente Roberto Sgreccia – Acervo pessoal Alex Sgreccia
Direitos autorais reservados
Alex, adoro seus contos.
Lucia, fico contente que goste dos contos. Obrigado
Alex , este último Conto e demais.
Lindo, triste , emocionante, simplesmente maravilhoso.
Espero com ansiedade o próximo .