Termina de ler o romance. identifica-se com o personagem de maneira tão intrínseca, como se sua vida tivesse sido outra, a dele. Permanece em estado de perplexidade, no limiar da demência. Tranca-se no quarto em estado de vigília. As noites emendam-se aos dias em madrugadas impregnadas de torpor, de olhar esgazeado pela longa ausência, de mantras repetidos à exaustão, de distanciamento e fuga do próprio corpo, redemoinho da alma esvaindo-se pelo fio de prata, cordão umbilical que liga seu coração ao estertor das estrelas.
Não sabe quanto tempo ficou assim, em viagem astral. Percorreu a trajetória de vidas passadas, até identificar o elo que o liga indissoluvelmente a ele, seu novo persona. Nele encontrou os vestígios da intricada malha em que sua maldição foi tecida e o alento para sobreviver ao avesso da vida.
Acredita, piamente, que poderá seguir seus passos, até seu destino fundir-se no dele, de corpo e alma. Anseia por esse momento e o traduz em poema. As palavras jorram-se aos borbotões na tela do computador.
Noite adentro do inverno que se anuncia
Ouvi seu grito, convite
Rock-canção, metálico, visceral
Dilacerando a solidão dos condenados
Despertando em cada corpo
O mais animal dos desejos
Em cada alma, a luxúria mais ardente
Apolo do ancien régime
Meu coração acompanha teus passos
Em busca da origem desconhecida
A luta mortal com a alcateia de lobos
Gargantas destroçadas, sangue banhando as mãos
No bárbaro ritual de sagração do senhorio
Herança pagã de tempos imemoriais
Crepúsculo sobre as águas do Grande Canal
Esplendor de mosaicos e noites bizantinas
O luar atravessando janelas e pórticos de mármore rendilhado
Frenesi de festas venezianas
Máscaras de sorriso enigmático
Ocultando os segredos mais obscenos
Espartilhos comprimindo o mais lascivo dos anseios
Decotes generosos expondo seios arfantes
À sede selvagem de lábios sensuais e caninos afiados
Madrugadas umedecidas de orvalho
Caminhadas solitárias pelo bosque de oliveiras
O suave toque de mãos
Descobrindo a leveza de túnicas esvoaçantes
Virgens sacerdotisas do templo de Dionísio
Longa espera pelo festim tão ansiado
Abraço envolvente e beijo voraz
Desnudando o corpo e despertando o cio adormecido
Estertor e transe na entrega final
Intrincada malha de luz e sombra
Revelando ondulações suaves
Do corpo feminino
Oásis luxuriantes, fonte de água límpida
Refúgio de guerreiros núbios
Aconchego de caravanas persas
Águas mornas do Nilo
Banhando os pés de figuras milenares
Esfinges leoninas em sereno repouso
Olhar humano perscrutando insondáveis segredos do tempo
Templos de Luxor sustentados por palmeiras colossais
Câmara real onde ela o aguarda
Nefertiti, pescoço delgado de gazela desprotegida
Sangue contaminado pelo infortúnio da vida eterna
Origem dos condenados ao mundo de noites infindáveis
Leito de prazeres e de angústia
Relicário de virtudes e perversões inomináveis
Felino à espreita da presa
Nos becos escuros e prostíbulos
De bairros decadentes de Nova Orleans
Pop star, anjo cibernético
Sorriso neon reproduzido em painéis gigantescos
Da São Francisco futurista
Teu canto, grito de Pan agonizante
Ecoa por vales e planícies
Junta-se ao meu lamento
Atravessando os séculos