A travessia dos lagos andinos – Primeira parte
Janeiro de 1999. Aproveito o voo para observar os Andes. Apesar de ser pleno verão e de não chover na região há meses, ainda há uma quantidade de neve nos pontos mais altos da cordilheira. O destaque fica por conta dos inúmeros vulcões extintos que sobressaem na paisagem. Pouso tranquilo em Port Montt, com uma magnífica vista do lago Llanquihue.
Hospedo-me no Hotel Colonos del Sur, uma simpática construção de madeira. Meu apartamento tem uma janela com vista para o lago com o vulcão Osorno ao fundo. Resolvo dar uma volta. Sento-me no banco à sombra de uma frondosa árvore. Bate uma sensação de enorme paz. Os sentidos ficam despertos, apurados. Sopra uma brisa refrescante, vinda do lago.
Há muitos banhistas no local, apesar da água fria e da praia de areia grossa e pedregulho. Turistas alemães tomam cerveja ao sol. Mochileiros improvisam o almoço, protegidos pela sombra das árvores. Retorno ao hotel depois de uma série de fotos. Às quatro da tarde, saímos para um giro pela cidade e pelo porto. Nada excepcional.
Às vinte e duas horas, desço para o jantar. Ainda não anoiteceu. O reflexo da luz deixa parte do lago prateado. Predomina o cinza, em diferentes matizes, mais acentuado nas bordas ao longe. Aos poucos a imagem do Osorno vai desaparecendo na penumbra, O som suave da música clássica acentua a magia desse momento.
Depois de termos visitado, no dia seguinte, Puerto Varas e a pequena vila de Frutilar, símbolo da colonização alemã na região, voltamos ao hotel para o check out e partir em direção ao local onde terá início a travessia dos lagos. Paramos no interior do parque para ver de perto os Saltos de Petrhué. O canyon, aberto num terreno de lava petrificada, é um sinal impressionante de eras remotas em que o vulcão era ativo. O tom esverdeado da água contrasta com os paredões e margens de tom cinza grafite. A força do rio, espremido entre as paredes estreitas do canyon, provoca redemoinhos e uma correnteza de águas espumantes, que aos poucos vai se tornando mais calma e assumindo uma coloração esverdeada. Essa água alimenta o lago de Todos os Santos, também conhecido como Lago Esmeralda, nosso ponto de partida.
Aguardamos o desembarque dos passageiros que estão fazendo a travessia dos lagos no sentido inverso ao nosso, da Argentina para o Chile. Depois das boas vinda, subo ao convés para apreciar a paisagem. Dos dois lados, contrafortes da Cordilheira e vegetação luxuriante nas margens do lago, escarpas rochosas e neve nos picos mais elevados. Céu azul, manchado de nuvens. O Tucumarã segue tranquilo, cortando águas mansas, passando ao largo de pequenas ilhas cobertas de mata fechada.
Final de tarde. O barco deixa um rastro de pequenas ondas que parecem escamas na superfície do lago. Fotografo o vulcão Cerro Pontiagudo, de 2.493 metros de altura, visto na contraluz, semicoberto por um véu de nuvens. A beleza é tranquilizadora. A sensação de felicidade se repete. Os sentidos estão despertos. A beleza se renova a cada momento, é real e intangível. A paisagem é agressivamente bela: o recorte das montanhas, o verde profundo no centro do lago contrastando com as águas translúcidas de suas margens; praias que terminam em tapetes de grama, iluminados pelo sol poente; árvores centenárias projetando uma frondosa ramagem para dentro do lago.
Chegada, ao anoitecer, em Peulla, onde somos acomodados num hotel de madeira, parada obrigatória e única de quem faz a travessia. Na manhã seguinte, faço uma caminhada pelo bosque no entorno do hotel, em direção ao Véu da Noiva. O guia havia feito uma brincadeira ao falar do local: a água faz prodígios, pode manter o amor eterno, separar amantes ou até mudar o sexo do interessado. Tudo depende da quantidade de água tomada da pequena cascata.
Saímos em direção à fronteira com a Argentina. Seguimos por uma estreita estrada de terra, dentro do parque, na região de Paso Perez Rosales. Em pouco tempo, passamos de uma altitude de 300 para 900 metros. Paramos alguns instantes para apreciar, através da mata cerrada, o monte Roncador, de 3.491 metros de altura.
A entrada na Argentina foi feita sem muita burocracia: uma rápida olhada nos documentos, nenhum problema com a bagagem. Retomamos o ônibus em direção a Puerto Frias. Tomamos o barco para atravessas o lago do mesmo nome em direção a Puerto Blest. Subo para o convés. Céu de brigadeiro, de azul intenso. Um casal espanhol, de Barcelona, aproxima-se e começamos a conversar. Viajam muito. Estão fazendo um giro pelos países andinos. Pediram dicas sobre o Peru e Macchu-Picchu. Falo um pouco da minha viagem pelo pais, anos antes. Contam suas andanças pela África, a viagem pelo Seringuetti, a subida ao Kilimanjaro e a passagem pelo desfiladeiro que une os picos Mawenzi, de 5.149m e Kibo, de 5.895 m de altura!
O cenário é similar ao do dia anterior, depois de cada passagem estreita, uma paisagem ainda mais deslumbrante. Atracamos, depois de duas horas, em Puerto Blest. Antes de deixarmos o barco, o guia dá instruções sobre o almoço e a retomada do passeio. Acho as orientações confusas. Presto atenção nas instruções dadas em inglês. Continuam confusas.
Terminado o almoço, resolvo caminhar pelo bosque até o porto onde o Tucumarã nos apanhará para a última travessia dos lagos. A caminhada pela trilha dura cerca de uma hora. O caminho margeia o lago foi aberto, há muitos anos atrás, para transportar o antigo vapor El Condor. Dos dois lados da trilha há uma densa vegetação de bambu. Em certas passagens é tão cerrada que forma um túnel. Caminho devagar, ouvindo os sons da singular floresta. Troncos enormes de árvores caídas espalham-se pelo caminho.
Paro diante de um exemplar de coiihue, árvore típica da região, com cerca de 800 anos. Tem um significado especial para os moradores da Patagônia. Sua madeira é preferida para a construção de casas, por manter o interior aquecido no inverno e ameno no verão. Da trilha se vê, de vez em quando, o lago. Parece uma imensa esmeralda, vista através de uma cortina rendilhada de ramagens, como se a natureza tivesse sido lavrada pela mão de um paciente ourives.
Finalmente, chego à plataforma de madeira onde pergunto a um casal se estou na direção correta. Apresso o passo até a cachoeira, onde tiro mais fotos. Desço até o porto. A vista do lago é deslumbrante. Aos poucos, vai chegando mais gente. Então, instaura-se a confusão: estamos no lugar certo? Esclarecida a dúvida, depois de muita discussão, chega o casal que diz ter acabado de passar pelo local, para além da cachoeira, onde há um exemplar de coihue de 1.500anos, à beira de um outro lago. Chega o casal espanhol. Resolvo subir com eles a trilha, apesar do tempo ser escasso. Afinal, o que é a vida sem uma aventura?