A bruma densa envolve o telhado e resvala pela fachada sem graça das casas do bairro operário na manhã de inverno. Mora numa república de estudantes, onde o conhecem por André. Escova os dentes apressado, deixa para comer o pão na chapa com um pingado na padaria da esquina. Esfrega as mãos junto aos lábios, soltando baforadas no ar. O frio atravessa o casaco de veludo gasto e atinge os ossos. Ajeita o boné com a aba virada para o lado direito. É o sinal de que a reunião está confirmada. Endereço e senha serão repassados em outro ponto, em local movimentado e mais seguro.
Verifica discretamente se não está sendo seguido. As ruelas estão vazias, janelas e portas fechadas. Apressa um pouco o passo, sem conter a ansiedade. Está a poucos metros do local combinado, o túnel que liga as duas partes do bairro, separadas pela linha de trem. Confere a hora no relógio de pulso, gesto aparentemente casual. Medida desnecessária, sabe que da padaria até ali são dez minutos de caminhada ligeira para pegar, pouco depois e do outro lado, o ônibus das seis para o centro.
Entra no túnel e sente um arrepio na pele. O local tem um quê de sinistro com a escuridão que ainda espanta os olhos, como nos tempos de criança. Acelera o ritmo ao antever a luz vinda da outra extremidade. Esboça um sorriso de confiança quando percebe o pequeno vulto na bicicleta vindo em sua direção. É ele, o Bruno. Passa indiferente, com olhar distante, pedalando na direção oposta. Seu coração bate mais forte, inundado por uma corrente de ternura.
Não consegue lugar para sentar no ônibus lotado. Sente o desconforto de corpos se encostando e de passageiros que se atropelam para avançar mais um passo. Fixa o olhar nas imagens passando ligeiras pelas janelas de vidro embaçado, como se as ruas e avenidas estivessem em movimento.
Lembra-se de quando foram apresentados como companheiros de célula. Disfarçou a emoção vinda de contrabando diante do olhar misterioso e o aperto de mão viril. Eram tempos de sofrimento. A angústia aninhara-se em seu peito e o consumia de forma lenta e gravosa, indesejada como a melancolia no rasgo amarelo de céu numa tarde de outono. No abandono quase absoluto das horas arrastadas de solidão, buscava compreender o que era ser no mundo, pássaro ferido, impedido de voar. As palavras ainda soavam em seu ouvido: “Não quero nada com você, gosto é de macho”. Os lábios finos esparramavam o vermelho do batom em palavras inaudíveis, os olhos de pálpebras sobrecarregadas de maquiagem cintilavam repulsa. Bruno foi o fio de luz que iluminou e aqueceu seu coração.
Com o tempo, deixaram de observar regras básicas de segurança e passaram a se encontrar no bar da esquina das duas avenidas, depois das aulas da faculdade. Era o ponto de encontro de jornalistas, intelectuais desencantados, estudantes de cabelos compridos e figurino alternativo, o que sobrara da esquerda de fachada que se confundia com a fauna noturna naquele ambiente decadente, onde o pensamento ainda era livre. Comentava com Bruno, entre um gole e outro de conhaque barato, as matérias insípidas do curso de Ciências Sociais. A exceção ficava por conta da professora de Sociologia do Conhecimento, uma italiana franzina de olhos verdes e cabelo ruivo, ao estimular a leitura e provocar o debate de pensadores da Escola de Frankfurt ou de romances ainda em voga, como O Estrangeiro. Custou-lhe caro. Foi obrigada a desaparecer na clandestinidade, antes de deixar o país pela fronteira com o Uruguai.
Pede uma dose de vodca, enquanto espera o amigo. O velho garçom o atende com o sorriso ligeiro de sempre. O tratamento recebido nos calabouços da ditadura Vargas havia lhe rendido o andar trôpego, cicatrizes nas costas e no peito, e o olhar de uma melancolia indistinta, cinza, quase triste. Sabia dos perigos do agora e seu ouvido era surdo às conversas nas mesas.
Ele chega com semblante meio cansado, de quem enfrentou lidas e se equilibrou num só pé, deu nó em gravata e em pingo d´água, sorriu quando devia ter arreganhado os dentes, relevou sem ter esquecido. Caminha em direção à mesa do canto, com o cenho mais leve e brilho no olhar, sereno e terno, de quem botou ordem no coração inquieto, aceitou o inusitado porque só faz bem, não se incomoda com olhada de esgueio, nem com riso de ironia abafado com a palma da mão. Quase não lembra o filho do Coronel Junqueira, dono de léguas de terra, a perder de vista no Campo das Vertentes. Veio para a capital para estudar e aqui ficou.
“O que está lendo”, pergunta ao puxar a cadeira. “Um daqueles livros proibidos? Só pode ser, você encapou. Não percebe que assim chama mais atenção”? “Nada disso! Coloquei capa para não estragar, peguei emprestado. É o livro do Camus, que você já leu e não gostou”. “Não gostei mesmo. Como pode! Enterrar a mãe e sair no dia seguinte atrás de mulher, como se nada tivesse acontecido. Achei um absurdo!” “É disso mesmo que se trata, um ‘romance do absurdo’, como a vida, destituída de sentido. Encontrar uma razão para continuar vivendo é o nosso dilema. Já conversamos sobre as aulas da Silvia, a professora italiana. Na sequência, vamos discutir o Mito de Sísifo. Fundamental para compreender o romance, segundo ela”. É interrompido pelo amigo, que segura sua mão. “Já conheço o enredo. Depois arremata-se com o Ser e o Nada, não é mesmo? Não adianta insistir, não vou ler! Vou deixar os filósofos que escrevem romances serem lidos por intelectuais e a juventude desesperançada“. Deixa-o prender sua mão por mais alguns instantes. “Vamos mudar de assunto, porque esse rendeu. Você está sem paciência hoje. O que aconteceu? ”
Se tivesse prestado atenção na inquietação do amigo ou seguido a própria intuição, talvez tivesse evitado o desfecho trágico. Bruno estava incomodado com a prisão repentina de vários camaradas nas últimas semanas. Deram um tempo aos ataques relâmpagos a bancos. Recompuseram as células, mudaram de endereço sem deixar rastro. Refizeram a trajetória dos pontos marcados e dos contatos estabelecidos e concluíram serem aparentemente seguros. Aparentemente. Havia algo errado, que precisava ser descoberto e desfeito, de um só golpe e de forma certeira, ou a segurança da organização continuaria comprometida. Sugeriu uma mudança radical de estratégia. Depois de receber o sinal no túnel, compareceu ao ponto. Foi preso por agentes da repressão. Na mesma semana, teve a foto estampada na página policial de um jornal vespertino. Seu rosto estava desfigurado e tinha marcas de tortura no corpo. A matéria dizia ter sido morto ao resistir à ordem de prisão.
Não voltou para a república. Transtornado, decidiu passar no Fênix. Precisava do álcool para aquecer o corpo e de um momento de lucidez para aplacar a alma dilacerada. A vida parecia ter perdido o sentido. Pede uma dose dupla de vodca. O velho garçom o atende solícito, como sempre. Percebe o canto do olho repuxado por um tique nervoso enquanto a voz trêmula, quase engasgada, pergunta por Bruno. Só consegue responder: “Não sei”. Escorrega o corpo na cadeira enquanto os olhos embaçados mal distinguem o vulto das pessoas ao redor. Tenta repassar minuto a minuto da última conversa com o amigo, ali mesmo naquela mesa. Então se recorda de ouvi-lo dizer que precisavam mudar o esquema de segurança, ponto por ponto, “ou a vida de cada um de nós estará em risco”. Neste exato momento, lembra-se do velho garçom ter se afastado, depois de apanhar o guardanapo caído no chão. Sente um leve tremor no coração, ao notar ele agora conversando e desconversando com um cara nunca visto no bar. Tem o rosto bexiguento e o riso atravessado de tira que não consegue se disfarçar sob a japona de couro. Despede-se simulando continência com o indicador e o dedo médio. Tudo faz sentido, raciocina rápido.
Pega a faca de destrinchar carne na mesa ao lado e a esconde sob o casaco. Corre para o banheiro e pede ajuda, simulando passar mal. O garçom vem em seu auxílio com ar preocupado e voz melíflua: “Posso te ajudar, Lucas”? Então, ele sabe também seu codinome! Não tem dúvida, empurra o alcaguete contra a parede e enfia a faca no seu peito, de um só golpe. Arrasta-o para o espaço da privada, local nojento, e tranca a porta por fora. Lava rapidamente as mãos, paga a conta e deixa o recinto. Desce pela calçada do cemitério e aproveita a fraca iluminação para se desfazer da faca e da chave no bueiro.
Caminha como estrangeiro pelas ruas do centro, entorpecido pela vingança. Ainda amarga o resultado da própria imprudência. Seu coração está vazio. Transtornado, com o rosto colado na janela do vagão do trem que o leva para algum lugar na escuridão da noite, seus olhos procuram pelo companheiro, lá onde vagam as estrelas.