Diminui os passos, antes de entrar na galeria numa travessa do centro. Tira o lenço de seda que cobre os cabelos, mas mantém os óculos escuros ao entrar na sala comprida e mal iluminada do despachante. “Pois, não. Em que posso ajudá-la?” Não responde, de imediato. Abre a bolsa e retira o recibo do valor adiantado pelo documento. Ele observa o papel e confere o número do pedido. “Um minuto, deve estar pronto”. Dirige-se ao canto da sala, pega o molho de chave sobre a mesa e abre o arquivo. Procura pela pasta na segunda gaveta, recolhe o envelope pardo, olha o conteúdo. Volta-se para o balcão. “Aqui está. Confira se as informações estão corretas”. Retira os óculos. O leve movimento dos músculos faciais esboça o meio-sorriso de satisfação ao ver seu novo nome na certidão de nascimento: Helena Arantes Vasconcelos. Coloca o envelope na bolsa e diz apenas: “Está perfeito”, antes de virar as costas e deixar o recinto.
Agora pode dar entrada no pedido de novo RG. Deixará para trás o passado, como se não o tivesse vivido e pudesse apagar as marcas impressas na alma. Esquecerá o nome vulgar de puta. Ficara na dúvida, ao escolher a nova identidade, entre Mara Helena ou apenas Helena. Poderia emendar o primeiro num simples Magá, mais coloquial e certamente distinto, por evocar a origem que dispensa apresentação. Não era seu caso. Precisava de algo que soasse mais tradicional, sugerisse o peso de gerações, uma herança envolta em mistério.
Embora não deseje, as imagens sempre voltam, fragmentadas e esgarçadas pela lembrança. Recosta-se no monte de palha enquanto ele, o filho do vaqueiro, abre a braguilha, deita-se sobre ela, tira sua calcinha e a possui com a ansiedade do garrote que ainda não aprendeu a reconhecer o primeiro cio da novilha. São surpreendidos pelo pai com o chicote em riste. Depois de surras no porão em que ficou incomunicável, colocou-a no ônibus poeirento, com poucos pertences na mala e o endereço de uma dona de bordel na capital. “Lá que é seu lugar, vagabunda!”
Os anos passados naquele antro maldito, de noites de insônia e perversão, tatuaram em seu corpo imagens incandescentes, filigrana oriental de violações e abusos inomináveis, linguagem sânscrita vilipendiada por prazeres sórdidos, urros de gozo e gemidos de dor, toque de mãos pegajosas e beiços úmidos, cheiro repugnante de sêmen escorrendo dos lábios dilacerados, lágrimas recolhidas numa bacia de cobre. O longo tormento, enquanto a vida prendia-se a um fiapo prestes a romper, ressecou o que lhe restara de sentimento.
Conseguiu, finalmente, fugir desse inferno. Caminhou sem rumo pelas ruas da cidade. Foi onde conheceu a amiga que lhe deu abrigo e lhe abriu as portas das boates do bairro boêmio. Numa delas, conheceu o homem de meia idade, de ar misterioso e de pouca conversa, entremeada de longos silêncios. Parecia ter encontrado alguém como ela. Ele a tratou de forma diferente. Ao se despedir, deu-lhe o cartão com o endereço da firma que poderia procurar, se estivesse buscando emprego. Estavam selecionando candidatos.
Apresentou discretamente o cartão ao entregar a ficha de inscrição preenchida. Notou quando a responsável pelo teste fez uma discreta marca no formulário. Esforçou-se para responder a todas as perguntas, embora soubesse de antemão o resultado. Notou a apreensão de outras candidatas e, discretamente, não pôde deixar de sorrir confiante. A vida era assim, feita de pequenos golpes, não tinha vergonha de ter recorrido ao subterfúgio. Junto com os documentos para registrar a carteira de trabalho, entregou os falsos certificados de conclusão do colegial e de um curso técnico de contabilidade.
Mudou-se para o centro, onde alugou uma kichenette de apenas três ambientes: banheiro, sala conjugada com o quarto, cozinha dividida com a área de serviço. Era sua vez de experimentar nova vida. No trabalho, estranhou que ele não tivesse pedido ainda algo em troca. Sabia que devia pagar pelo favor recebido. Espera o fim do expediente e bate de leve na porta da sala, em que a luz continua acesa. Recebe-a com surpresa. Desabotoa a blusa, tira os sutiãs e deixa à mostra os seios pequenos. Ele os acaricia enquanto desliza a mão dela sobre o membro túmido. Sua respiração torna-se ofegante, enquanto se desnudam. Coloca-a sobre a mesa, tenta seguidamente, mas não consegue penetrá-la. Deixa-o gozar entre seus seios. Empurra-o devagar enquanto ele beija seus pés. Anos de aprendizado no bordel a haviam preparado para viver sem espanto.
Nota que está sendo observada por um jovem solitário, cujos traços a levam a suspeitar, vagamente, de ser alguém conhecido. Recusa a abordagem de um cara mais velho, que desperta repulsa. Percebe que o rapaz continua olhando-a, de forma mais insistente. Resolve voltar para casa. Pendura a conta, pega o casaco de lã e sai apressada do bar, sem olhar para trás. Ouve o som de passos apressados seguindo-a. Começa a correr. Ouve o chamado: “Norma! Norma, espera!” Agarra seu braço enquanto ela vira-se assustada, tentando se desvencilhar. “Sou eu, Norma, não está me reconhecendo? Sou o Raimundo. Finalmente te encontrei. Passei anos te procurando!” Sim, é ele, seu amor adolescente, reconhece. Tenta controlar o ritmo acelerado das batidas do coração. Olha-o com frieza enquanto diz: “Você está me confundindo com outra pessoa. Meu nome é Helena e não o conheço. Me solta, ou chamo o guarda”, diz apontando para o policial que faz a ronda no bairro.