“Gauguin: o outro e eu”, mostra inédita no MASP
O artista e o museu dispensam apresentação. A exposição faz parte de uma série de mostras que procuram analisar, a partir de perspectivas críticas, artistas europeus canônicos presentes no acervo do MASP — que possui duas obras de Gauguin —, problematizando sua obra à luz de questões contemporâneas.
“É a primeira exposição a problematizar a relação de Gauguin com a ideia de alteridade e da exotização do ‘outro’. A mostra aborda questões centrais em sua obra e tem como foco dois temas emblemáticos: seus autorretratos e seus trabalhos produzidos no Taiti (Polinésia Francesa), onde realizou suas pinturas mais conhecidas e passou a maior parte da última década de sua vida. O Taiti que Gauguin representou ia além da realidade encontrada por ele, reproduzindo as fantasias que um homem europeu tinha de uma ilha paradisíaca, intocada pela ‘civilização’ europeia.”
Munido dessas informações, estava ansioso para conferir a mostra de um dos meus pintores preferidos. O primeiro contato com a obra do artista de dera no próprio Masp, nos anos de juventude, experiência revisitada no meu último texto – Contagem regressiva – cuja passagem reproduzo abaixo. Sintetiza a emoção que senti nas primeiras visitas ao Masp, revivida agora sem aquele espanto, mas com a mesma admiração.
“É tragado pelo turbilhão da descoberta. Não consegue acreditar que está diante de exemplares originais de artistas que conheceu nas ilustrações dos poucos livros de arte a que teve acesso ou dos quais ouviu falar nas rodas animadas de conversa com amigos no Rio. Sente vertigem e se embriaga com tanta beleza. Procura se conter. Aproxima-se das paredes envidraçadas e observa por instantes o tráfego agitado na avenida. Sabe que está num templo da arte e do conhecimento, planeja voltar outras vezes, sem pressa, para processar as informações. Elas se misturam a sensações desconhecidas e o remoem por dentro. Precisa de tempo para decifrar a linguagem poética e de signos inscrita nas obras. Volta para casa em silêncio.
Retorna ao local, sempre que pode. Aos poucos faz escolhas. A preferência vai se direcionando aos impressionistas. A quantidade significativa de obras no acervo do museu pode ter condicionado o sentimento que vai se tornando predileção, talvez pela possibilidade de se deter diante de criações do mesmo artista ou de representantes da mesma escola para estabelecer parâmetros, identificar nuances, compreender a linguagem, aquela que toca o coração. Experimentará, anos mais tarde, sensação semelhante ao visitar alguns dos maiores museus do mundo.”
A mostra se abre com autorretratos, um deles do acervo do Masp. Neles estão registradas as marcas do tempo e nuances do olhar que revela, antes e depois de ter perscrutado o “outro”, aquele que percorreu as regiões longínquas que habitavam seus sonhos.
No primeiro, realizado no início da carreira, as pinceladas marcadas e o efeito da luz sobre o rosto remetem ao impressionismo, iluminam uma parte e sombreiam a outra, revelam o olhar evasivo, à espera do que está por vir. O brilho dos olhos castanho-claros é ressaltado pela luz. Os lábios grossos e rosados sob bigodes espessos expressam uma sensualidade discreta, convidativa. No segundo – Autoportrait près du Golgotha – o artista envelhecido e sob uma despojada túnica aparenta desilusão. Os efeitos da luz são mais tênues, refletindo-se no rosto em sentido contrário ao do primeiro retrato. Anos se passaram na descoberta de si e do mundo que imaginara desprovido dos vícios da civilização, o mundo dos trópicos e ilhas do Pacífico que ele retratou com a exuberância de corpos e cores em paisagens luxuriantes. Esse mundo, para seu desencanto, fora corrompido em sua pureza. O próprio artista não colocou anteparos a esse processo, deixando-se levar por ele. É possível ver a escuridão em seus olhos, aquela que o tornou errante na terra, atormentado pela beleza. Atrás de si, no canto direito e nas sombras, quase imperceptível, o espectro que o persegue.
No quadro acima – Femmes de Thaiti ou Sur la plage – Gauguin faz o contraponto entre duas mulheres na praia. Uma cabisbaixa e de perfil silencioso, a outra vista de frente, desconfiada, de olhar de soslaio. O vermelho vibrante do tradicional pareo amarrado à cintura e o rosa do vestido recatado e sem graça usado pela outra marcam a distância e estabelecem a relativa tensão entre dois mundos, aquele que resiste em preservar a cultura nativa e o outro corroído pela assimilação de valores cristãos, trazidos pelos missionários. O paraíso com o qual Gauguin sonhara já havia sido conspurcado pela civilização.
Um tronco escuro em diagonal separa a cena em dois planos. No primeiro plano, a mulher observa a amiga lavar os cabelos à beira do riacho. Predomina o azul, tom escuro dos saiotes tradicionais e o claro da areia invadida pelo rosa das águas – uma liberdade do pintor sintetista ao brincar com as cores – em contraste com o branco das blusas cavadas que expõem costas e braços morenos. A exuberância da folhagem é ressaltada por cores acentuadas, do abóbora-avermelhado aos tons nuançados do amarelo. A vida pulsa de forma vibrante, generosa e cálida.
No segundo plano, à esquerda, destaca-se a imagem da mulher nativa, de cabelos longos, pele morena, ancas largas. Signo expressivo e solene da cultura ancestral. Ao longe na paisagem, mulheres conversam alegremente.
As cores chapadas, intensas no primeiro plano e mais tênues no segundo evocam os preceitos do sintetismo, corrente artística que ajudou a criar como superação do impressionismo, buscando a simplificação das formas e da expressão, o equilíbrio entre a perspectiva da paisagem e as cores chapadas e vibrantes. O mundo é permeado pela tensão entre tradição e mudança. A linguagem poética para retratar em imagens e cores o lugar que no seu imaginário fora o paraíso e que agora se transfora fica mais evidente na tela abaixo.
A tensão entre dois mundos é traduzida com mais vigor no quadro em que são mais marcantes ainda os traços do sintetismo. As fronteiras entre eles são demarcadas pelas cores, voluptuosas e tépidas na cena no primeiro plano, mais suaves e em equilíbrio no universo recriado no segundo, dominado pela imagem de Hina, deusa da Lua e símbolo da mitologia matriarcal. A divisão entre os dois planos é estabelecida pela imagem cujo sangue impregna as águas e cuja dor se espraia pela paisagem como as asas de um pássaro ferido. As ondas coloridas dão formas a figuras que atraem e seduzem, traiçoeiras.
Uma das jovens carrega, sob os seios desnudos e redondos, a vasilha de madeira com pedaços de fruta vermelha, sanguínea. A outra, com um dos seios à mostra, igualmente suculento como pêssego maduro, mantém entre as mãos fechadas uma penca de flores rosas. O tecido azul claro que cobre parcialmente seu corpo contrasta com o pano azul escuro sobre a saia rosa-azulada da primeira. As cores em tons suaves ressaltam a pele morena, tropical e morna, de corpos que exalam sensualidade e desertam o desejo.
A luz refletida sobre corpos de pele canela-escura registra e desperta o desejo. Desta vez, as pinceladas são fortes, remetendo às origens impressionistas. As cores vibrantes sobre formas sobrepostas que compõem a paisagem dão a impressão de profundidade e, ao mesmo tempo, despertam a imaginação para o cenário fantástico da praia onde o amarelo-ouro da areia se transforma em rosa e azul, antes de encontrar as ondas do oceano azul escuro, delimitado em tons mais claros pelo firmamento.
Em síntese, uma pequena e grande mostra do artista que fez um longo aprendizado na arte – aprendeu técnicas com o escultor Jules Bouillot (1837 – 1894), foi introduzido na cerâmica por Ernst Chaplet, na pintura paisagista por Pissarro (1830 – 1903), e na pintura de interior por Edgar Degas (1834 – 1917 – depois de ter abandonado a carreira de corretor na bolsa de valores. Teve uma curta e conturbada vivência com van Gogh, antes de partir para ilhas remotas do Pacífico em busca do paraíso, o mundo intocado pela civilização, que retratou com paixão, genialidade e desencanto.
O Masp sai engrandecido com esta exposição.