TEXTO
Os sertões são muitos
Lá pro meio do ano, o dia amanhece frio em certas bandas do Sertão. A cerração encobre várzea e terra baixa. Quando chega perto das onze, é a melhor das horas. Homem senta na soleira da porta, mulher proseia na janela. Meu gosto, desde moleque, é aproveitar esse tempo pra deitar em pasto de capim gordura, tocar a ramagem macia, observar a luz do dia dourando folhas secas de erva cidreira, sentir o morno do sol espalhando o cheiro da terra, esquentando o corpo e enchendo a alma de sentimento leve, tão leve
como pena de canarinho-da-terra, a sombra de sua mão roçou meu rosto, com a ponta dos dedos tocou meus lábios e afastou, com medo de calor que queima, de desejo que abrasa. Ah! se possível fosse que sentimento oculto revelasse seu nome, que libertado fosse do medo e vergonha que botaram grades de ferro no coração, que abençoado fosse por Deus e pelos homens, que pudesse voar que nem borboleta, leve, tão leve
tesava meu coração inocente, quando recebi visita de Deus Pai, Deus Filho e Espírito Santo na primeira comunhão. Olhei com respeito e fé a pequena hóstia consagrada, de tão alva e transparente que quase tremia, não fosse a mão firme do padre e sua voz solene: “Corpus Christi”. Botei a ponta da língua pra fora, fechei os olhos e senti o Senhor Meu Deus pousar de leve, tão leve
que nem mistério que para o tempo e suspende a hora no ar, silencia o canto dos anjos e vibra as cordas do silêncio, faz dia parecer noite e noite parecer dia, leva o mundo a nada mais ser e a continuar inteiro, força o coração a se contrair de dor e a explodir de alegria, tão forte e tão intensa
era a vontade de compreender o segredo das palavras, que não cansava de escrevinhar no chão de terra varrida letras que tinha aprendido de cor nas primeiras aulas de catecismo: “Deus me vê”. “Deus me vê”, repetia eu que nem papagaio, sem entender que o batido de som tinha significado nas letras. “Deus me vê”, este mistério não carecia de luz
como eu não carecia de leitura para aprender nas aulas de Dona Benedita, solteirona de costume rígido e vontade forte, de carnes tão magras que era apelidada e também conhecida por Dita Saracura. Tão magra e rija
era sua mão ameaçando e batendo com palmatória, que não tinha outro jeito, senão prestar muita atenção nas ideias que não entendia, como “Santíssima Trintade é Deus Pai, Deus Filho e Espírito Santo, cada um sendo um, sendo todos só um”. Entonce, era repetir, decorar e responder o perguntado com resposta guardada na ponta da língua. Toda manhã de sábado era o mesmo lero-lero. Tão minguada era a alegria
que só depois do catecismo podia brincar com a molecada ou escapar mode observar trilha de porco do mato, subir em pau espinhudo de paineira, ou de pequi, pra espiar filhote na casa de João de barro. Desde pequeno, felicidade era curta e liberdade pouca,
tão pouca, que aprendi fazer o tempo, que era só meu tão pouco, ficar grande que nem o rio que beirava a vila e carregava nas águas mansas solidão e anseio. Dele não conhecia começo nem fim, só o meio que separava as terras daquele lugar e minha infância em duas bandas, a do lado de cá e a do lado de lá, o antes do depois. A vida era só o começo de caminho. Demandava só caminhar. Num carecia ruminar muita ideia. Era só deixar se levar
pelas horas do dia, ora lentas, ora assustadas. Antes de enveredar pro meio de pasto ou de brejo, era de costume se proteger com reza: “São Bento, água benta, pro Senhor Jesus abençoar. Bicho mau baixa a cabeça, pro filho de Deus passar”. Repetindo reza e respeitando costume, a vida parecia leve e pequena, tão pequena
que botava pergunta sem resposta: “Será que o mundo seria pra sempre do mesmo modo? Tinha como enveredar por outros caminhos, além daqueles traçados no chão batido de terra?” Comecei a assuntar, com o coração espremido de dúvida. “Teria saída pro Sertão que já estava dentro de mim, alimentando e amordaçando a alma? Haveria sabedoria para desfazer laços de trama tão bem urdida?” O feito parecia não poder ser desfeito. Ou teria jeito
de descobrir o segredo das palavras? Tentei, entonce, escrever com areia nome que estava rabiscado com giz no quadro negro e gravado na memória: Benedita. Soletrei, juntando letra com letra, enquanto escorria a areia da mão pro chão do terreiro. Botei sentido no som da voz e nas letras que iam se formando: Be-ne-di-ta. Repeti: Be-ne-di-ta. Será que podia juntar as letras com sons diferentes? Tentei: be – bi – ba. Mais uma vez: ba – be – bi – bo – bu . De novo e diferente: na – ne – ni – no – nu. da – de – di – do – du. Misturei: bobo, dado, nada, tudo. Os olhos vertiam lágrimas de encantamento. Sentimento ficou maior que o coração, leve, tão leve
como voo de borboleta, a descoberta das palavras rompeu as amarras que prendiam meu destino no Sertão. O mundo ficou grande, a vida menos miúda e os Sertões passaram a ser muitos, dentro e fora de mim.
O tempo
Tem coisa no mundo que na primeira olhada se entende. Outras demandam tempo de espera e observação. Tem imagem pra se ver de perto, tocar com os dedos, sentir a cor, gosto e cheiro. Outras só se avistam bem do alto, pelo olho de gavião que plana no céu em dia de pouco vento.
Muita descoberta é possível. O que parece simples é deveras complicado. Uma planta tem cor e perfume, uma palavra solta ou rimada também. A corda da viola gera melodia ou lamento? O canto do violeiro semeia paixão que aperta o peito ou alegria que liberta sentimento? Prosa tem ritmo e movimento, conforme o coração guia as palavras, ora mais ligeiro ora mais lento. Entonce, como expressar os significados da vida no mundo que são muitos?
A imagem que observo e admiro é pra ver de perto e de longe. De perto, sinto o arenoso do chão da lagoa que secou. Respiro a aragem que sobe da terra com gosto de sal. De longe, onde se vê lagoa seca, enxergo tristeza e solidão. Na aridez da lagoa, num tem sofrimento e dor de mulher de bucho seco, que nunca pariu rebento? Sentimento encolhido e remoído por penca de perguntas sem resposta: será fruto de desgraça tramada com mau-olhado, reza e promessa pro oculto? Será vontade de Deus? Será castigo por pecado cometido e não perdoado?
De perto, vejo outra lagoa de água rasa, coberta de lodo. No miolo, lama seca. De longe, parece o olho que tudo espia e tudo vê. Olho vazado e morto. Agradeço. Observando além, interrogo. Será paisagem de terra plana, com leito de rio fazendo divisa de lote de terra nua com pastagem de capim nativo?
O pensamento flutua que nem pena de canarim levada por vento fraco. Se num for isso que os olhos conseguem ver, será outra coisa? O mundo não será matéria mais complexa? E se, em vez de divisa de terra, o marco for dobra do tempo? Poderá ser? Interrogo uma, duas, muitas vezes. O tempo, o que será? Terá dobra? Resposta pra essa inquietação só depois de ruminar ideia.
Tempo num é mais que uma passagem de um momento pra outro, anunciado por dobra de sino de capela? Tem o que foi, o que é e o que virá a ser. É movimento de água do rio que leva canoa de um paradeiro pra outro. Avança feito correnteza, se apressa e salta que nem corredeira, fica parado que nem água de remanso. É que nem dia que passa ligeiro e hora que dura uma eternidade. É uma coisa, pode ser outra. É o verso, mas pode ser o avesso e o contrário.
Tempo tem marcas que visão num vê, mas que pensamento alcança. É recheado de bordas, mas num tem fronteira. Minuto, hora, dia, semana, mês e ano num são invenção do homem, como moirão de cerca, pra medir o infinito? Entre um ponto e outro da paisagem que é o tempo, tem memória do que foi vivido e sentido, falado e escrito, reservado e exposto.
Tem experiência que num se esquece, como ler estória do Sertão pro filho que se comove e chora. Tem outras que a memória apaga com o tempo. Tem sentimento que fica guardado pra nunca ser revelado. E tem hora ou momento, miudinho de tempo, que num vale a vida inteira?
Num será tudo isso, ou disso um pouco, que o amigo quis dizer com essa fotografia?
Muxoxo
O olhar pousa na imagem que nem passarim se aproxima de fruta madura. O encarnado da cor faz imaginar cheiro e gosto. A forma confunde, embaralha a ideia. Fruta de comer fica pendurada na ramagem, num brota de dentro do tronco, num é? Se num é fruta, o que será que o amigo capturou com tanto apuro nessa fotografia? A ideia dá conta de compreender sozinha? Carece de ajutório do sentimento? Consegue fazer os dois voarem que nem pareio de ararinha azul, traçando no céu caminho sem rumo certo?
A luz que encanta o olhar força o devorteio pra imagem. Alumia o pensamento. Dá nó apertado no coração. Quanto sofrimento e dor estão ali, enlaçados pelo desidério e desatino! A vida tem desses mistérios, quem há de saber? O que causou ferimento tão profundo?
Num foi obra de golpe certeiro de foice ou de machado, esses deixam no lenho ou no peito outra marca. A dor que pressinto e sinto é de membro arrancado à força do corpo, de músculo lacerado e sangue vertido, de grito de desespero que não escolhe lugar e hora, de choro abafado no peito amigo, de lamento acanhado no meio da prosa sincera, inté o sentimento virar muxoxo, quando do ferimento curado e da dor calada sobra só cicatriz. Paixão tem dessa cura? O que fica no lugar do amor perdido, solidão? Num sei. Quem poderá saber?
Medusa Sertaneja
Valentias no Sertão são muitas. De quem corta carne de jagunço na ponta afiada de faca. De quem enfrenta onça com varão de caça, depois que cachorro acua. De quem amansa e doma cavalo que nunca foi montado. De quem atravessa rio, sem medo de correnteza ou de jacaré. Assim se diz, assim se espera.
Valentia maior é enfrentar o medo, a assombração da morte, a malícia do demo. Esconjuro. Num tem amuleto ou reza brava pra espantar as coisas do oculto, pra proteger do maldito e do malfeito, pra fechar o corpo de bala disparada com pontaria ou de corte, na certa, de facão de dois gumes. Esconjuro mais uma vez e sempre. Desconfio e num tenho certeza.
Contemplo a fotografia feita pelo amigo. Arrepio. Será medo? É respeito ou reverência? Hesito e tremo. Sinto calafrio. Existe estranheza maior? Tem formosura que encanta, tem mistério que amedronta. Benzo e rezo. É sagrado ou será profano?
Aproximo e toco. Tem secura de pele curtida pelo sol e pelo tempo. Quem armou essa cabeleira de Medusa sertaneja, que esconde a cara e protege o cangote, feita de cobra, mão seca, lagartixa, bico de mutum do brejo, pena de cotinga pintada, ossada de piranha, cabeça de urutu? E se o bicho acorda do sono que prende e amarra o corpo no tronco da árvore? Esconjuro de novo. Saio de banda e dou meia volta. E outra. Asseguro firme as contas do rosário, aperto a cruz de madeira.
É devaneio da imaginação? Num parece. Assemelha mais obra feita e maturada, de nascença estranha, que a lente ligeira do amigo capturou e revelou pro mundo. Poderá ser o que vejo, ou não ser o que enxergo, quem sabe?
Fotografia: robertonardini
Texto: alexsgreccia
Publicado originalmente no livro Fotografia, o que será?
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