Fotografia, o que será?, publicado em 2011, foi o resultado de uma parceria com o amigo e fotógrafo, Roberto Nardini. Um trabalho artesanal de edição, finalizado com esmero pela gráfica Arrisca, localizada perto de casa, em Pinheiros.
As fotos de Nardini surpreendem pela beleza. Tiradas de troncos de árvores e retrabalhadas graficamente, transformam-se em paisagens abstratas de colorido denso, incomum. Fazem o pensamento e a imaginação voarem, “que nem pareio de ararinha azul, traçando no céu caminho sem rumo certo”.
Escrito numa linguagem que remete ao imaginário de vivências em Minas e nos Gerais, terras sem fronteiras que habitaram nossa infância e adolescência, e continuam alimentando nossos sonhos, o texto de apenas cinquenta páginas especula sobre o significado das imagens contidas em dez fotos, sem pretender decifrá-las, por se tratarem de arte, aquela “que se faz pelo avesso, descostura o que foi costurado, desarruma o que é certo e garantido, embaralha os sentidos, bota pra pensar no que é ou no que poderá ter sido”.
Marcou o reencontro de amigos e foi minha primeira aventura na literatura.
O livro será disponibilizado em breve no formato de E-book.
A seguir, um trecho do livro:
Amigo meu mostrou fotografia que fez, tempos atrás. Disse que foi tirada de árvore. Observei atento. Assuntei. A alma entrou em desassossego. Os pensamentos pegaram fogo. As fagulhas dessa queimação corriam que nem Buscapé, de um lado para o outro do cérebro, despertando o espírito para compreender a estranheza de algo muito especial, diferente da natureza que a gente costuma ver nas coisas deste mundo.
Os olhos viam aquilo que era e num enxergavam aquilo que parecia ser. Coisa de arte. Artes tem poucas. Num é ofício que repete o que se aprendeu, desde sempre. Ofício exige destreza e disciplina. Arte se faz pelo avesso, descostura o que foi costurado, desarruma o que é certo e garantido, embaralha os sentidos, bota para pensar no que é ou no que poderá ter sido. Tem dessas travessuras. Como é que pode fazer uma coisa ser outra? Tem resposta não. É tarefa para a imaginação.
O amigo é das Minas; eu, dos Gerais. Ele sabe de poucas coisas muito, assim ele quis. Eu sei de muitas coisas pouco, assim o destino decidiu. Quando topamos novamente, depois de tantas andanças por veredas diversas, o coração ficou alegre de saber que os gostos num tinham ficado tão diferentes. Mistérios da vida, sorte da felicidade. De tão modesto, demorou pra mostrar sua obra de criação. Ouviu primeiro. Leu e releu meus escritos, descobrindo no arranjo das palavras mais segredo e beleza do que, quem sabe, elas tenham. Ficou o sentimento de que se refaz, ponto por ponto, o laço que liga na amizade um e outro. Trama urdida sem pressa, de quem sabe saborear um gole de cada vez.
Mas fazendo o devorteio para o começo da prosa, pensei na árvore donde tinha sido tirada aquela imagem. Árvore é pra fazer sombra, num é? Quando é boa, dá fruto. Ou entonce, dá lenha. Se o tronco for forte e antigo, pode virar canoa. Se num for retorcido, serve de viga mestra para casa. Enfim, tem dessas serventias. Mas será que tem outras? Os pensamentos começaram a girar num outro eixo. Quando uma árvore rebate o vento que atravessa forte a noite de mau agouro, protege, num protege? Ara, pois, quando abana a brisa que sopra no rosto, numa ajuda a despertar sentimento guardado fundo no peito, meio adormecido? Será que ela fala com as nuvens mais em riba uma linguagem caprichosa que o balanço da rede desconhece? Fui e voltei nessas perguntas, sem resposta certa para toda essa querença de saber.
Entonce, como interpretar a imagem que desorientava a vista? Talvez faltasse sabedoria. Sabedoria num nasce com a gente, disso eu sei, mas todo cabra pode desenvolver de tudo um pouco. Quando a alma fica enfoguetada com muita pergunta, o melhor a fazer é assossegar. Apartar o que faz sentido, que aponta para uma vereda, daquilo que não leva a lugar nenhum. Pensei antes nos segredos e vontades que tinham levado o amigo a fazer aquela obra. Foi mão do acaso ou fruto da procura? Coisa como essa não se acha com facilidade. Passarinho vê semente de perto, gavião enxerga presa das alturas. Artesão vê no barro a panela que vai refogar guisado, tira do lenho a gamela que garimpa ouro.
Vagueando o olhar naquela imagem, indaguei. Fotografia, o que será? Escrevinhar uma ideia por meio de uma imagem, será? Nem todas. Tem umas que mostram o mundo do jeito que ele é. Nem mais, nem menos. Já é alguma coisa, num é? Mas essa que atormenta minha imaginação será outra coisa? Olhando bem, parece corpo de mulher feita escondido nalgum lugar. Se é moça donzela ou mulher dama, num se sabe. A luz do dia alumia partes desejadas desse corpo: peitos bem formados, sem muito volume. Firme e liso, um deles, como fruto no ponto de ser colhido. Do jeito que os dedos apreciam tocar. O outro tem marcas de sofrimento. Como terá acontecido? Quem terá produzido no corpo formoso amarras tão diferentes do destino?
Difícil nessas horas é imaginar o rosto dessa mulher. Fiquei cheio de curiosidade, como rapaz que corre atrás de aventura. O pensamento voou que nem ave assustada. Terá ela sorriso matreiro, de quem manda mensagem de desejo? Ou terá lábios finos e sem vida, de quem já pressente a aparição do anjo da morte? Terá olhos de gazela, que despertam no amante vontade de proteger, ou garras da onça parda, que rasgam a carne antes de devorar? O recato de moça virgem ou de mulher de virtudes encobre a parte mais baixa do ventre, aquela que guarda as portas mais secretas da paixão e do gozo, que levam o coração a explodir no peito e o pensamento a se perder no tempo, sem pressa pra encontrar caminho de volta. Ou será que ela mostra de tudo só um pouco, com propósito disfarçado de incendiar o desejo?
Que vestimenta será essa que cobre o resto do corpo? De que fios foi tecida? O algodão rústico do serrado, trabalhado no giro da roca e no vaivém do tear, terá gerado a fazenda usada para costurar o vestido de noiva? Ou terá servido para tramar a mortalha? Terá sido esgarçado pelo tempo, retorcido e endurecido, só pra desnudar parte do corpo que virou tronco de árvore? Respostas pras perguntas num tem. Mistério da vida é assim, parte é revelada, parte continua encoberta. Desse modo não fosse, num teria aquela comichão na cabeça que faz o homem especular ideia. Nem amigo pra fazer arte com fotografia.