O principal fato internacional com repercussão na conjuntura brasileira no mês de fevereiro foi a crise diplomática entre Brasil e Israel, provocada pela reação do governo de Telavive à declaração de Lula em Adis Abeba, capital da Etiópia, de que o massacre de palestinos em Gaza pelas forças israelenses lembra o início da perseguição dos judeus por Hitler. Netanyahu afirmou que Lula havia “ultrapassado a linha vermelha” e o declarou “persona non grata” em Israel. O ministro de relações exteriores do governo de ultradireita, Israel Katz – o mesmo que defendeu a limpeza étnica em Gaza – humilhou o embaixador brasileiro numa cerimônia realizada no memorial do Holocausto em Telavive, distorcendo novamente a declaração do presidente brasileiro e exigindo pedido formal de desculpa.
A mídia corporativa brasileira reproduziu o discurso do governo israelense, condenando Lula por ter usado incorretamente a comparação com o Holocausto. Inflamou a extrema direita nativa com essa narrativa – quando Lula jamais usou o termo – apoiando-se na repercussão do fato na mídia internacional, na expectativa de uma reprovação do presidente brasileiro pelas principais lideranças internacionais, exatamente no momento em que se realizava no Rio de Janeiro a reunião de chanceleres em preparação à cúpula do G20 no Brasil no final do ano.
O governo brasileiro não recuou. “Isso é coisa absurda. Só aumenta o Isolamento de Israel. Lula é procurado no mundo inteiro e no momento quem é [persona] non grata é Israel”, disse Celso Amorim, assessor especial de Lula para assuntos internacionais. Na abertura da reunião do G20, o chanceler brasileiro Mauro Vieira afirmou que as reações do governo de Israel à fala do presidente Lula comparando a guerra em Gaza ao Holocausto são inaceitáveis, mentirosas e cortina de fumaça para os ataques no território palestino. O ministro Silvio Almeida denunciou no Conselho de Direitos Humanos da ONU os crimes cometidos contra a população civil em Gaza, reafirmando a posição do governo brasileiro pela criação de um Estado Palestino.
Logo após a reunião com Lula, o chefe do Departamento de Estado, Anthony Blinken, exaltou a parceria entre os Estados Unidos e o Brasil, para a decepção da mídia nativa que esperava uma veemente contestação do pronunciamento do presidente brasileiro contra o governo israelense: “O Brasil é um parceiro fundamental em muitas questões, incluindo o combate à crise climática e a promoção dos direitos humanos e trabalhistas. À medida que nos aproximamos dos 200 anos de relações EUA-Brasil, nossos laços estão mais fortes do que nunca.”
Foram inúmeras as declarações de autoridades internacionais contra as atrocidades cometidas por Israel em Gaza. O Presidente da Federação Árabe Palestina do Brasil (Fepal), Ualid Rabah elogiou Lula pela coragem de condenar o genocídio palestino promovido por Israel: “O presidente Lula foi corajoso, como não foram corajosos e decentes os grandes líderes internacionais na época em que a Alemanha avançou sobre a Europa de 1939 em diante”. Dezenas de lideranças internacionais se manifestaram a favor da criação do Estado Palestino como solução para a paz duradoura na região. A matança de mais de 120 civis em Rafah por militares israelenses, quando buscavam alimentos distribuídos pela ajuda humanitária, horrorizou o mundo, isolou ainda mais Israel e deu novamente razão ao presidente Lula.
A crise diplomática com Israel deve ser contextualizada no momento em que o país está diante de uma encruzilhada, continuar a guerra ou buscar a paz. Segundo analistas, a construção da paz supõe três pilares: a marginalização do Hamas, a criação de um Estado palestino e a edificação de um sistema de segurança compartilhado entre Israel e os países árabes. Para assegurar essas bases, não basta a derrota militar do Hamas, que Israel não conseguiu apesar de toda a devastação em Gaza. As negociações em curso entre EUA, Israel, Egito e Qatar envolvem a criação de uma alternativa de poder ao Hamas, com base numa Autoridade Palestina renovada, capaz de oferecer um governo legítimo aos habitantes de Gaza e da Cisjordânia.
“Israel tem a chave da prisão na qual, desde 2002, está encarcerado Marwan Barghouti, líder das intifadas, defensor da paz em dois Estados e única liderança que conta com apoio majoritário do povo palestino. Sua libertação é o passo indispensável para desenraizar o Hamas. Uma Autoridade Palestina dirigida por Barghouti formaria o esteio para um governo unificado na Cisjordânia e Gaza, o embrião do Estado palestino”, afirma um desses analistas.
No entanto, o projeto se esbarra no atual governo, uma coalizão do Likud com supremacistas de extrema direita, conduzido por Netanyahu. Diante dos últimos reveses – manifestações populares que bloquearam a reforma judicial que iria conferir poderes autoritários ao Congresso; ataque do Hamas em outubro passado que derrubou os alicerces do sistema de segurança nacional – a continuidade da guerra continua sendo a boia de salvação do atual governo. É por isto que Netanyahu não dá ouvidos a Biden – que o chamou de imbecil – e força o caminho da guerra, a ação militar em Rafah, mesmo que ela leve ao assassinato em massa de palestinos. Em outras palavres, é o processo em curso de “limpeza étnica” ou de extermínio de um povo. Qual é mesmo o nome que se costuma dar a este tipo de tragédia humana?
A direita brasileira não deixaria o pronunciamento de Lula e a rusga com o governo Netanyahu passar em branco. Não faltaram críticas no parlamento, onde chegaram a ser colhidas assinaturas para um eventual impeachment do presidente; púlpitos se transformam em palanque nas igrejas evangélicas onde a condenação do governo israelense por Lula virou ultraje a Israel, à terra santa e ao povo escolhido; os editoriais da grande mídia corporativa e os analistas políticos nos principais canais de televisão condenaram a comparação equivocada com o Holocausto, apontando-a como um desserviço à diplomacia brasileira.
O estardalhaço contribuiu para desviar o foco do principal fato político no cenário nacional: a operação da polícia federal – Hora da Verdade – no dia oito de fevereiro, fazendo busca e apreensão de documentos e prendendo pessoas, inclusive militares, que estariam envolvidas na tentativa de golpe. O documento divulgado para justificar a ação da PF indica uma trama articulada em várias frentes de um golpe para acontecer logo depois da derrota de Bolsonaro nas urnas e que não teve êxito. Pretendia-se disseminar a ocorrência de fraude nas eleições de 2022, como objetivo de “viabilizar e legitimar” uma intervenção militar. O grupo golpista se dividiu em núcleos para divulgar notícias falsas sobre fraude eleitoral e invalidar a vitória de Lula. O documento deixa claro que o oito de janeiro foi o estertor desse movimento, não seu epicentro.
Estivemos mais perto do que imaginávamos de uma “virada de mesa” que só não aconteceu por falta de adesão de setores importantes das forças armadas, apesar dos esforços dos golpistas em buscar seu apoio. Documentos apreendidos e vídeos de reuniões com militares de alta patente e ministros de Estado detalham como se armou a trama.
Os dados analisados por André Barrocal (Carta Capital (21/02/2024) apontam que “Bolsonaro quis reverter na marra o resultado, com um decreto de estado de sítio ou de defesa. A canetada mandava prender Moraes (então e ainda hoje à frente da Justiça Eleitoral), cujo paradeiro era monitorado. O cumprimento do decreto dependeria das Forças Armadas, mas não havia adesão unânime das casernas ao plano, daí a necessidade de pressionar os militares claudicantes”. Em outras palavras, Bolsonaro pretendia “tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes”. Pretendia ainda “tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído”. Documento apreendido durante a operação da PF na sala de Bolsonaro na sede do PL revela o script do discurso que ex-presidente faria para justificar o golpe.
As informações reveladas são extremamente graves. “Para Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, Paulo Gonet, procurador-geral da República, e Fábio Shor, delegado da PF, Bolsonaro é possível autor de crime, ilícitos tipificados nas leis do Estado Democrático de Direito, de 2021, e das Organizações Criminosas, de 2013. Os três utilizaram a expressão ‘materialidade’ na papelada que assinaram e deu origem à batida. Materialidade, em situações criminais, quer dizer existência de provas da ocorrência de um ilícito”, analisa Barrocal.
Tudo indica ser iminente uma acusação por parte do procurador-geral, único autorizado a propor ação penal no Supremo. O ex-presidente foi proibido de deixar o País e teve o passaporte recolhido por ordem de Moraes. “Pelo teor do despacho de Alexandre de Moraes, já existe muita coisa contra Bolsonaro e muitos elementos para uma denúncia. Paulo Gonet deve estar a esmerar-se. Será uma denúncia para a História”, afirmou o ex-ministro da Justiça e subprocurador-geral aposentado Eugênio Aragão. A situação ainda pode piorar para Bolsonaro se os s colaboradores presos na operação Tempo da Verdade – os coronéis do Exército Bernardo Romão Correa Neto e Marcelo Costa Câmara, o tenente-coronel Rafael Martins de Oliveira e o analista político Filipe Martins – resolverem abrir o bico, a exemplo do ex-ajudante de ordem Mauro Cid.
Acuado, Bolsonaro convocou seus apoiadores para uma manifestação na avenida Paulista, em São Paulo, no dia 25. Temer atuou como mediador diante do Supremo para garantir que Bolsonaro manteria um discurso moderado, sem ataques à corte ou a seus ministros, num tom de pacificação. A manifestação reuniu cerca de 180 mil manifestantes, demonstrando enorme poder de mobilização das forças de direita e de extrema direita. Compareceram ao ato governadores (Tarcísio/SP, Zema/MG, Caiado/GO), parlamentares, líderes evangélicos. “O Brasil inteiro ficou surpreso. Talvez seja a primeira vez na história que alguém chama um evento em praça pública e confessa o crime. E vai além disso: pede anistia aos crimes praticados”, disse o ministro da Casa Civil, Rui Costa.
Na opinião de analistas, foi usada na manifestação a estratégia da ambiguidade, ora ofensiva na crítica ao Supremo por perseguição política e ao governo acusado de autoritário, parte que coube ao pastor Malafaia; e ora defensiva, de reafirmação de valores conservadores e obscurantistas e de defesa da anistia aos golpistas, discurso assumido especialmente por Bolsonaro. Diante da iminência do indiciamento do ex-presidente e de outros envolvidos na trama do fracassado golpe, os bolsonaristas se anteciparam e colocaram a demanda por um novo pacto legal e explícito de anistia.
No campo democrático, a posição é clara, desde a manifestação de repúdio ao golpe em janeiro de 2023: “Sem Anistia”! Foi a palavra de ordem que ecoou nas ruas. Membros do Supremo já afirmaram que a proposta é inconstitucional. O sugerido pacto precisa ser combatido politicamente. Há dois motivos sérios para não ser aceito. “O golpismo, principalmente de setores militares, precisa ser exemplarmente punido, para que se desencoraje de forma dura novas tentativas desse gênero. Na estratégia da ambiguidade, o bolsonarismo quer a paz legal/jurídica, enquanto promove a guerra e o ódio políticos. Este é o conhecido jogo da extrema-direita, que se vale das instituições democráticas para destruir a democracia.”
O quadro esboçado acima sugere que a democracia no Brasil ainda corre risco. O tema deve ocupar o centro da disputa política no próximo período. E a direita leva larga vantagem nas redes sociais. Busca encobrir seus crimes, particularmente a trama golpista que agora foi revelada. Num movimento ideológico de inversão da realidade, arvora-se no discurso em defesa da liberdade e da democracia, acusa o atual governo de autoritário e o Supremo de agir a seu favor, perseguindo os bolsonaristas que se manifestaram no oito de janeiro. Reverter esse quadro e ganhar a disputa pela hegemonia na sociedade continua sendo o principal desafio da esquerda.