Coloco, a seguir, excertos do romance. Foram escolhidos aleatoriamente. Narram uma cena, abordam um fato ou contam o desfecho de uma estória relacionada a personagens secundários do Escrevo. Espero, com a iniciativa, despertar o interesse de quem passa pelo Blog pelo livro.
O Leilão
Ismênia encarrega-se de enfeitar o espaço do leilão. Rebeca não perde a oportunidade de ver esta parte da cidade sendo transformada num lugar tão bonito como aquele que vê em seus sonhos. Entre um poste e outro, são penduradas bandeirolas de diversas cores, demarcando o formato retangular da praça. Ao lado do coreto é fincado um mastro colorido, para o qual convergem fileiras de bandeirolas e fios carregados de lâmpadas, formando uma espécie de toldo iluminado e colorido.
Rebeca segura na mão do pai para não se perder no meio da multidão. As mesmas pessoas entristecidas na procissão da noite anterior caminham alegres de um lado para o outro, parando nas barraquinhas para tomar quentão ou comprar algo para comer. Rebeca se lambuza com um tufo de algodão doce e não sabe direito no que prestar atenção. Param, finalmente, em frente do barraco do leilão. O leiloeiro já está a postos. É um senhor de meia idade, alto e corpulento, dotado de voz possante.
Examina cuidadosamente as prendas e escolhe uma das mais baratas para começar o trabalho. O frango assado fora colocado sobre folhas tenras de alface e rodelas de tomate numa bandeja de papelão envolta em papel celofane. Apresenta a prenda para a multidão que se aglomerara à sua frente, dando passos vigorosos ao redor da mesa. Olha para a bandeja, vaga o olhar pelo ajuntamento de pessoas e fita com firmeza um eventual comprador, perguntando com voz forte e sonora: “Quanto me dão”?
O sitiante, pego de surpresa, responde timidamente: “Vinte” O doador da prenda logo se apressa, dobrando o lance: “Quarenta”! O leiloeiro continua satisfeito: “Quarenta! Dou-lhe uma, dou-lhe duas…”É interrompido por novo lance vindo do lado direito, onde se reúne um grupo de fazendeiros: “Sessenta”! Mais entusiasmado ainda, o leiloeiro desafia a multidão: “Sessenta, sessenta! Dou-lhe uma, dou-lhe duas…” Faz uma pausa, encara o silêncio do público, espera intermináveis segundos e proclama finalmente: “Vendido por sessenta”! Aproxima-se do escriturário e diz baixinho: “Frango assado oferecido por Dona Rosarinha, vendido para o Coronel Osório por sessenta reis”!
As prendas vão sendo leiloadas a preços cada vez mais altos. Leonel está ficando contente com o resultado. “Se continuar nesse ritmo”, pensa, “amanhã entregaremos ao vigário uma boa féria. Será nossa contribuição à construção do asilo para pessoas desamparadas”. Chega a hora esperada das prendas mais caras. Rebeca pedira para o pai arrematar um dos cartuchos feitos pela mãe. Eles estão saindo a preços altíssimos. Perde o lance do cartucho de tirinhas brancas para um fazendeiro endinheirado: seu lance final foi superado em vinte reis. “Uma loucura”! Pensa. Para não perder a pose, acaba arrematando um cartucho semelhante por um preço quase igual.
Rebeca está toda contente com a cartucho que mal consegue carregar. As tirinhas de papel crepom tocam sua bochecha, fazendo cosquinha. “Mamãe não vai gostar nem um pouco de saber que não arrematou o cartucho dela”. Ele responde: “Mas o recheio deste cartucho é muito melhor. Todo mundo sabe que a Isabela di Constanza é uma doceira de mão cheia”! Rebeca olha para ele e diz: “Por isso mesmo! Mamãe vai ficar triste” Ele pisca para ela: “Mas você não vai contar o que acabei de dizer, vai”? Ela responde com vivacidade: “Claro que não, papai”.
Laura
Espera há mais de uma hora na saleta, ao lado do vestíbulo onde os visitantes deixam os chapéus, os sobretudos e casacos, antes de entrarem nos salões do enorme palacete. Veio tão logo ficou sabendo que o tio estava gravemente enfermo. Talvez possa reencontrar Olavinho, que não vê há tempos. Sente certo embaraço por ainda não ter sido recebida. Percebe que a longa espera faz parte do propósito que demarca, sem deixar dúvida, a distância social que a separa dos parentes enriquecidos. Reunindo o pouco de orgulho próprio que lhe resta, Laura decide finalmente deixar o recinto. Atravessa as aleias do amplo jardim, pede ao porteiro para abrir a porta lateral da imponente entrada, sai sem olhar para trás, como se o gesto a redimisse da mais amarga humilhação.
Caminha lentamente pela rua vazia do elegante bairro, sem saber onde pegar o bonde. É abordada pelo chofer que notou sua saída e recebera ordem de buscar o médico da família. “Quer uma carona? Estou indo para o centro”. Aceita, sem perder a pose, dizendo apenas: “Obrigada”. Percebendo a oportunidade, Artur a convida para sair na tarde do dia seguinte, sua folga no trabalho. Reluta por um instante, observa mais uma vez seu feitio robusto e olhar sedutor, enquanto pensa: “Por que não”? Ao descer do carro diz: “Combinado, amanhã às três da tarde”.
Passeiam pelos jardins da Praça da República, param por alguns instantes para admirar o majestoso edifício do Teatro Municipal e caminham em direção ao Viaduto do Chá, ponto de encontro de casais românticos. Observa o Vale do Anhangabaú, sentindo o sol do final de tarde tocar seu rosto. Os encontros sigilosos se repetem, ao longo da temporada em que continua hospedada na casa da amiga Letícia. Engravida-se e se casam quase que às escondidas, numa tarde de inverno desprovida de emoção. Ele dedica-lhe intensa paixão, recebe em troca pouco mais que a entrega fria e relutante, o sentimento de crescente menosprezo e o saldo final de um casal de filhos que se vê obrigada a criar.
Anos se passaram desde que perdera o marido. Abandonada pelos filhos, resolve, não sem penosamente resistir, voltar para Santana, onde ainda tem a casa herdada dos pais. O sofrimento deixou suas marcas, mas não apagou os traços de sua antiga beleza. Manteve, como pôde, a aparência de distinção e mistério, enclausurando-se na antiga residência.
Sentado na poltrona ao seu lado numa viagem de ônibus a São Paulo, o jovem a ouve dizer com despropositado saudosismo: “Ainda vou restaurar a casa de meus pais, tal como era no passado”. Repara que ela usa sapatos de pelica, feitos à mão, ouve-a contar estórias da afortunada juventude, como se vivesse no passado.
Leonardo estranha o telefonema de Eurídice, pedindo que a ajude a convencer a irmã a pagar aluguel pela casa onde mora e que também lhe pertence. Sem saber o que fazer, procura o velho amigo. Beto se prontifica a acompanhá-lo na inusitada missão. São recebidos na tarde do domingo para um lanche cuidadosamente preparado, longe de ser como aqueles oferecidos pela esposa de seu Otávio, nos tempos de prosperidade da família. Ouvem da amiga, entre um comentário e outro sobre tempos passados, que como coproprietária do imóvel, tem o direito de ocupá-lo. Em troca, deixaria sua parte para a irmã em testamento, no qual pede que assinem como testemunhas, tão logo o documento fique pronto. Observa os dois amigos e lembra-se do passado. Já não sente ciúmes. Pergunta a Leonardo se sente saudade da filha que se casou com um alemão e que agora mora em Berlim.
Praticamente cego, Beto leva a refeição para a velha amiga. Aprendeu como fazer em segurança o curto trajeto entre uma casa e outra. A cegueira aguçou seus sentidos e a idade acentuou os sentimentos de retidão de caráter e de generosidade. Sente o cheiro da saborosa refeição que carrega na marmita, enquanto atravessa a passos lentos a estreita rua. Sobe devagar o lance de escada, deixa a marmita na soleira da porta e aperta a campainha. Volta para casa com os mesmos passos miúdos.
Ela não sai mais de casa. Com o passar do tempo, não consegue dormir a não ser por poucas horas. Tem dificuldade de distinguir o dia da noite e se perde na vastidão da insônia que se confunde com sua angústia. Não se lembra de quando isso começou. Sentiu-se ainda mais desamparada ao ouvir sua mãe dizer que não voltaria a vê-la. “Minhas pernas já não têm forças para subir a Rua da Saudade. Você devia deixar de ser teimosa e vir comigo”.
Perambula na escuridão dos corredores carregando uma vela acesa. Encosta o rosto na vidraça da janela voltada para a pracinha e não consegue distinguir as pessoas que ali se aglomeram. Olham em direção ao vulto por trás das velhas cortinas de renda e comentam que a casa é assombrada, habitada por almas penadas.
Zé do Bode
O sol da tarde continua inclemente, abrasando o telhado dos casebres no bairro pobre do Crato. Caminha pelas ruelas de terra, procurando uma sombra para descansar. Observa as crianças barrigudas e maltrapilhas, correndo de um lado para outro no quintal cercado por pés de palma, observadas à distância pela mãe de semblante entristecido e rosto encovado. Continua caminhando até se deparar com uma pequena praça de formato disforme, onde um enorme mandacaru serve de apoio para a lona encardida do improvisado circo. Aproxima-se com curiosidade. Observa pela fresta e se surpreende com a cena.
O palhaço brinca com um grupo de crianças. Dá uma cambalhota, levanta-se ligeiro, enfia a mão no bolso sem fundo, olha intrigado para a pequena plateia, dobra o corpo até os dedos roçarem a ponta da botina. Pisca seguidamente o olho esquerdo, enquanto puxa a mão para fora, apalpa os bolsos do paletó, até encontrar o surrado livreto de cordel. Abre o folheto, arregala os olhos, caminha em direção à criançada, passa a ponta do dedo indicador na língua, vira a página e lê com a voz sonora e pausada: “Crescido em chão espinhoso, aprendeu logo a missão. Sempre firme e caridoso, foi nosso Pai no Sertão”. Em seguida, passa o cordel para o garoto à sua frente. “Continua lendo”! Surpreso e inseguro, lê tropeçando nas palavras: “Pela Virgem Maria abençoado”. Diante do seu embaraço, pergunta: “Quem continua, quem se habilita”? Ninguém toma iniciativa. O palhaço intervém. “Vamos formar grupos de três. Quem tiver dificuldade de ler, pede ajuda para o outro. Depois de lerem os versos, escolham uma palavra e façam com ela outro verso. Não é difícil, é só soltar a imaginação”, diz enquanto distribui cópias do cordel, folhas de papel e tocos de lápis para as crianças.
Percorre os pequenos grupos, dando palpite, corrigindo erros, batendo palma, dando tapinha nas costas de um, ou fingindo puxar a orelha de outro. Segue-se uma divertida apresentação dos novos versos. “Pelo rico zoado, nunca perdeu a razão”. “Com fé fez milagre, salvou o pobre da danação”. “No Sertão…” O palhaço corre para trás do lençol preso ao teto de lona, onde guarda suas fantasias e apetrechos. Volta carregando uma pequena mesinha e uma caixa. Abre-a e a mostra ao grupo. Está vazia. Cobre-a com um pano colorido. Passa a mão sobre ela, seguindo o traçado de uma cruz. Puxa o pano e pede para a garotinha sentada no chão se aproximar. “Abre a caixa”, diz fazendo um gesto estudado. Ela o obedece: está cheia flores vermelhas. A criançada aplaude.
O palhaço dá uma cambalhota, levanta-se, pega a sanfona e toca uma música animada, pedindo que a garotada o siga, enquanto caminha em círculo. Para de repente, bota a sanfona de lado, tira o lenço do pescoço e o coloca no ouvido de um menino. Passados uns instantes, tira um ovo. A criançada cai na risada. Corre em direção a outro garoto e repete os mesmos movimentos. Arregala os olhos, enquanto puxa de dentro do lenço um pintinho. Espantado, o grupo aplaude. Dá nova cambalhota, levanta-se, estufa o peito e volta-se para a mesinha. Esvazia a caixa e a cobre novamente com o pano colorido. Pousa a mão sobre ela, olha demoradamente para a pequena e atenta plateia, puxa devagar o lenço. Ao abri-la, deixa escapar um casal de pombinhas. Elas voam em círculo, até encontrarem a fresta por onde escapam.
Passado o espanto, gritos e aplausos misturam-se com risadas. As crianças saem correndo. Ela continua batendo palmas. O palhaço não acredita no que está vendo. “Professora, como me achou”? Corre em sua direção e a abraça emocionado. “Logo eu te conto, Zé. Temos tanta coisa para conversar. Faz antes um pedido, pede aquilo com que mais sonha”. Ele a solta devagarinho, segura por um tempo seus braços. Olha-a diretamente nos olhos.
Perplexo e quase sem saber como segurar a emoção, observa Lampião sendo abençoado por Padre Cícero no interior da Capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Ao sair, quase se trombam nos degraus da igreja. O Capitão olha para ele demoradamente e diz: “Vem comigo”. Zé do Bode não vacila. Monta o cavalo e sai com o bando em disparada.
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