“Ainda estou vivo”, constata ao acordar, de repente, no meio da noite fria. A corrente sanguínea acelera-se, fazendo os músculos tremerem, inundando o cérebro com ondas de líquido denso e aveludado. Perde a noção do espaço, como se estivesse vagando em águas profundas, os dedos dos pés e das mãos alongando-se em fios delgados, translúcidos, fosforescentes, movendo-se ao som da música inaudível. O coração pulsa no centro da pequena nave, produzindo descargas elétricas que se espraiam pelo corpo e fazem cintilar a estrela errante no imenso vazio.
Faz um movimento calculado para sentar-se na beira da cama. Respira devagar e profundamente, uma, duas, três vezes. Sente o fluxo sanguíneo aquecer as pontas dos dedos, deslisar pelas veias e artérias que cortam o pulso, avançar pelo antebraço, provocando uma dor miúda ao pressionar canais estreitos no interior do corpo ainda frio. A pele arrepia, os músculos tremem novamente.
Levanta-se, cambaleia, rodopia, os pés inseguros escorregam, as mãos tateantes encontram o amparo da parede e do trinco da porta. Equilibra-se. “Por pouco”, pensa. Entra no banheiro, não acende a luz, procura na prateleira do armário sobre a pia o recipiente de plástico onde guarda o remédio para a pressão. Toma dois goles de chá frio, engole o comprimido. Senta-se na poltrona de couro e, aos poucos, mergulha no abismo que atormenta seu espirito.
“Sobrevivi mais um mês”, diz em silêncio, procurando tranquilizar-se. Depois de alguns instantes, corrige-se: “Enganei-me, por mais um tempo.” Não fora exatamente isto que fizera ao entregar-se horas a fio ao trabalho, fazendo pausas metódicas paras as refeições, saindo de vez em quando para comprar alimentos, acompanhando rotineiramente o noticiário do início da noite, assistindo a filmes na Netflix ou no aplicativo do Belas Artes, retomando a visita a museus, conferindo mostras em institutos culturais? Interroga-se, mesmo não querendo, resistindo: “Por quanto tempo ainda?”
O dragão de seda e cores reluzentes movimenta-se como uma centopeia na escuridão da praça. Ao som dos tambores, se contorce na dança da morte, aterrador. A luz do amanhecer, evasiva e relutante, percorre a encosta das dunas como um sopro, desnudando-as lentamente. Tons amarelo-cobre dissolvem o manto escuro, espraiando no horizonte pinceladas róseo-purpura que logo se dissipam, sob o fulgor de raios tépidos que aquecem aos poucos a areia. Sol a pino, o contorno do horizonte se torna impreciso, sob efeito da luz tremulante. Caminha pelas muralhas de pedra, à espera da invasão dos bárbaros.
Ele despeja a água da ânfora na bacia de cobre em que banha os pés da garota, estropiados em sessões seguidas de tortura. Massageia-os delicadamente sem olhar para ela. Enxuga-os com a tolha de algodão rústico. Deita-se ao seu lado, com o rosto colado a seus pés. Permanece em silêncio.
Uma das jovens carrega, sob os seios desnudos e redondos, a vasilha de madeira com pedaços de fruta vermelha, sanguínea. A outra, com um dos seios à mostra, igualmente suculento como pêssego maduro, mantém entre as mãos fechadas uma penca de flores rosas. O tecido azul claro que cobre parcialmente seu corpo contrasta com o pano azul escuro sobre a saia rosa-azulada da primeira. As cores em tons suaves ressaltam a pele morena, tropical e cálida, de corpos que exalam sensualidade e desertam o desejo.
Observa as telas suspensas. Os dentes da lâmina serrilhada despontam na trama de fios de algodão compondo uma imagem insólita. Os olhos se encontram no espelho, interrogativos, enquanto a ponta afiada da faca roça o pescoço. “Quando?”, interroga-se.