“Barba nascendo grisalha. Esse é o primeiro sinal quando surge cabelo grisalho. E o gênio ficando irritadiço. Fios prateados entre os cinzas. Imagine sendo mulher dele. Eu me pergunto como ele teve a audácia de pedir uma moça em casamento. Saia e venha morar no cemitério. Balance isso diante dela. Pode excitá-la a princípio. Cortejando a morte. Sombras da noite pairando aqui com todos os mortos estirados à volta. As sombras das tumbas quando os cemitérios bocejam.”
O texto de Joyce o atinge e incomoda-o. Os cabelos há muito deixaram de ser prateados. Olha-se no espelho depois do banho para conferir o resultado do sabonete usado para escurecê-los um pouco, mantendo o brilho natural. O jovem com quem troca mensagens no Face diz que se apaixonou. Tem atração por homens maduros, experientes, que conhecem o verdadeiro significado do amor. Vê a relação como entrega de um ao outro, paixão e ternura. As mensagens reacendem as chamas do seu desejo.
Enxuga-se devagar, divaga. Toca-se e não obtém a desejada resposta. Sentenciado a não saciar a própria fome e sede, carrega a condenção dos deuses, por ter roubado manjares do banquete a eles destinado no jardim das delícias. Dionísio não vem em socorro, nem se comove com seu infortúnio. Angustiado, corteja a morte. Caminha pelas sombras dos corredores até a sala. Mantém as luzes apagadas, enquanto dirige-se ao pequeno bar entre as colunas de madeira. Ergue com a mão trêmula a garrafa de vidro lapidado de Tântalo e bebe o último gole de vinho.
Deixara-se enganar estupidamente. De nada valeu a experiência de vasculhar perfis nos apps, enredando-os na teia armada para seduzir, brincar com o outro, roubar-lhe os sonhos, vampirizar seus sentimentos. Deixou-se envolver e perdeu-se em devaneios. Ele não oferecia tudo aquilo que habitava seus sonhos, não prometia colocar a seu alcance o consolo de carícias ternas e o estertor da carne trêmula?
Sabia que o estava enredando numa trama com desfecho incerto, mesmo assim continuou. Resistiu, insistiu, esticou a corda, protelou. Mas acabou sucumbindo ao fato de não poder manter a farsa. Não se perdoa por ter acreditado, por um breve momento, que tudo poderia mudar tão radicalmente.
Ah como o enternecera ouvir que seus cabelos grisalhos ainda despertavam paixão!
Iludir-se assim tão ingenuamente revela a fragilidade em que se encontra. A vida continua fora de lugar. Não consegue vislumbrar muito além do dia seguinte. Sobrevive como equilibrista na corda fustigada pelo vento. As soluções arquitetas em noites de insônia estão em descompasso com a realidade, objetiva, implacável. O cerco continua fechando-se e os dias parecem contados.
Refugia-se nas lembranças, aquelas que abrandam o coração.