O executivo de meia idade registra, na forma de diário, as conversas na rede com pessoas em busca de uma relação afetiva. Os pretendentes o procuram atraídos pelas fotos. Ele os enreda na teia de sedução da qual extrai inusitado prazer, estimulando e explorando seu desejo, criando situações em que atração e sexo misturam-se com sentimentos ternos, o mais puro fascínio.
Registra, na perspectiva do narrador que a tudo observa, como esse jogo o consome e o desumaniza. Em mergulho para dentro de si, lago de margens imprecisas, de camadas densas e liquefeitas da consciência, pergunta-se: Sobreviver do outro, devorar seus sonhos, vampirizar emoções para aquecer a solidão não é da vida o avesso? Não é morrer aos poucos?
Continua, mesmo assim. No entanto, o destino prega-lhe uma peça: apaixona-se. Vê-se enredado na própria armadilha. Da paixão vive o encanto e amarga o desatino.
Diário inacabado do desejo
Alex Sgreccia
Parte 1
Nos anos de juventude, o ponto final para a vida que ainda não tivera sentido chegaria no auge do vigor físico e no esplendor da consciência. Não abdicaria do direito de definir o próprio fim. Imaginei a morte de diversas maneiras. Haraquiri, o gume da espada dilacerando as entranhas. O corte incisivo na jugular pelo fio da navalha e o rápido estertor, sem tempo para arrependimento. O mergulho sem volta nas ondas do oceano. O repouso no leito de névoas. A travessia induzida pelo túnel de luz.
Nada disso aconteceu. Acabei de fazer cinquenta anos. Deixei-me levar, a vida ditando o próprio rumo, sem plano preciso, nem sonhos antecipados. Obtive reconhecimento, conheci o mundo. Ser no mundo, livre de algemas e condições que não escolhi. Amei intensamente, nunca estabeleci laços. Usei o fascínio para provocar o desejo e a dor. Fui gentil e cruel, sem me preocupar com a consequência.
Na viagem pelos países nórdicos para comemorar o aniversário experimentei, mais uma vez, o jogo dissimulado da sedução. Senti enorme prazer em ser desejado. Anseio pelo corpo que se oferece e não se entrega, lábios que se movem e apenas sussurram palavras inaudíveis, olhar penetrante que devassa segredos.
Na volta para casa, passei a usar as redes sociais para continuar esse jogo. Escolho e provoco. O gesto que ora faço retorna, imprevisível, para tocar meu coração. Arrisco.
***
Dia 1
Melhor ainda se me abraçar, mordiscar meu pescoço, beijar minha nuca.
Deixa comigo.
À distância, sinto essa energia nos aproximando, como se você estivesse aqui, roçando os lábios nos meus ombros, fazendo cosquinha na minha barriga para me despertar do enlevo.
O sol apareceu agora. Mas estou com preguiça de ir à praia.
Fico imaginando passar uma temporada com você no litoral Norte.
Tiro a roupa e coloco logo um short e vou surfar. Fico na água até lá pelas sete. Volto para casa, tomo um banho e vou para a academia. Como alguma coisa e fico no celular, provavelmente falando com você.
Gosto de conversar com o gato que me atrai e me prende. Essa malha está sendo tecida com afeto.
Vou acabar me apaixonando por você.
Quando vem me ver?
Uma amiga está precisando de consultoria em e-commerce, me chamou para dar uma mão. Só que mora na puta que o pariu! Estou pensando em passar a tarde lá e ir à noite para o seu ap. Pode ser? Vou dormir aí, na sua cama! Rsss.
***
Dia 2
Adorei a foto!
Gosto de namorar na rede. Mas pode ser no sofá ou na areia da praia.
Tomar o vinho em pequenos goles. Deixar-se levar pela sensação de estar perto do sonho.
Gosto de nadar para depois da arrebentação, ficar lá, namorando.
Sentir você me apertando, sua respiração alterada, o coração batendo acelerado!
Sinta o meu abraço, aí!
Já senti! Beijo.
***
Dia 3
Você fala de sonhos. Neles tem um cantinho para mim?
Claro que tem.
Caminhar em direção às ondas, molhar os pés, voltar, jogar conversa fora e tomar cerveja na boca da garrafa. Rir muito, riso solto de gente simples e feliz.
Quero virar a noite com você na praia, na minha terra, o Ceará. Pegar um quadrículo, correr na direção das dunas, deitar na areia, olhar as estrelas, transar.
Ao seu lado, o mundo fica pequeno. Está invadindo meu coração, devagarzinho. Deixo derrubar a cerca de proteção?
Deixa não, não quero derrubar nada. Vou entrar pela porta.
Ela está só encostada. Sei que vai chegar, pé ante pé, me abraçar de surpresa, olhar nos meus olhos e sorrir.
Beijar seu ombro.
E lamber devagar meu pescoço. Depois me beijar com sofreguidão.
A algema que colocou no meu coração pede para permanecer. Você chegou de repente, sentou-se à beira do caminho. Quer continuar?
Não sei onde vai dar essa trilha, mas quero!
Talvez seja cedo para dizer, mas sinto e pressinto que estou me apaixonando.
Deixa fluir, doce cativeiro.
***
Dia 4
Ficou tanto tempo em silêncio, o que aconteceu?
Revi nossas conversas. Baixamos a guarda, a paixão tomou conta, é melhor botar os pés no chão.
Depois de aprender a voar, de repente, me pede para “botar os pés no chão?” Sinto como se não soubesse mais andar.
***
Quase peguei o carro para descer a serra. No último instante, vacilei. Percebi o desastre anunciado, recuei. Desisti, ao me imaginar nos braços daquele que havia se casado com outro e ainda hesita em romper os fios da esgarçada convivência.
Algo passou a incomodar, sentimento vago, beirando ao difuso da rejeição, sem origem certa. Entreguei-me ao lento exercício de varar a noite sem pressa, de olhos abertos e em brasa, iluminando a escuridão de dentro e de fora, na busca de prós e contras, o aparente e o submerso, espelho por onde mergulho para dentro de mim, lago de margens imprecisas, camadas densas e liquefeitas da consciência onde a angústia de estar sendo, busca inclemente de mim mesmo, atravessa o crivo de filtros invisíveis.
De onde vem a dissintonia? De querer o breve e o efêmero, o calor apenas daquele instante e ele, ao contrário, o permanente e o duradouro, o alegre e o triste atados no viver juntos, vontade virando destino? Ou do receio de não suportar o raso da convivência no simples? Mero tesão resistiria ao crescente apelo, brotando do outro lado, como amor genuíno, atrevido e terno?
Decido cortar o broto que estava vicejando, antes de criar raízes. Bloqueio o número no WhatsApp. Sei que o gesto é cruel. A tristeza do outro, expressa de forma singela e tocante, me incomoda: “Depois de aprender a voar, de repente, me pede para ‘botar os pés no chão’? Sinto como se não soubesse mais andar.” Que direito tenho de seduzir de forma tão inconsequente? Nenhum, estou sendo perverso. Oblitero o sentimento de culpa, parto para outra aventura, sem saber o que ela me reserva.
***
Dia 5
Oi, legal te encontrar no Face.
Bom te conhecer também. Obrigado por aceitar minha solicitação. Você é muito bonito.
Obrigado. Você é atraente e parece alguém que protege.
Seria adorável conhecer você.
Gostaria muito. Um dia, quem sabe. Onde você mora?
Em Katerini. A cidade fica na região do Monte Olimpo, deve conhecer da mitologia.
Conheço. Sempre sonhei com deuses gregos.
Hehehe! Você é um cara muito terno. É atraente nas fotos.
Obrigado.
***
Dia 6
Teo? Parece nome grego. Como é possível?
Meu pai veio de Gênova para o Brasil. Na Itália, costumam me perguntar se sou grego.
Sim, pode ser! Você parece ser do Mediterrâneo.
Minha mãe nasceu na Espanha. Daí a mistura de raças.
Isso explica porque você é especialmente bonito. Talvez devesse voltar para a terra dos seus antepassados e ficar mais perto.
De você?
Sim! Hehehe!
Tá falando sério?
Sim, por que não? Não sei nada sobre você, no entanto sinto que o conheço. Como se fosse o destino e não a vida real.
***
Dia 7
Talvez você tenha família e não esteja sozinho. Não sei. E eu gosto de você, muito! … seu rosto, seu jeito de ser … tudo está me levando a apaixonar.
Sou solteiro. Quando estudei na universidade em Leeds, UK, experimentei algo parecido ao namorar um colega. Costumávamos dizer que viéramos de tempos passados, da Grécia.
Pode ser. Tem muita coisa dando liga. De repente, sinto que estou com sorte.
Eu também, surpreso. Você é solteiro?
Sim, sou. O universo parece estar fazendo a sua parte. Eu aceito o jogo com alegria.
Então, qual o próximo passo?
Na verdade, não sei! Mas estou contente por estar te conhecendo.
Continuamos nos falando. Pode enviar fotos e informações, como quiser.
***
Dia 8
No passado, joguei futebol profissional, agora jogo num time pequeno. Sou gerente numa companhia de combate ao incêndio. Fiz administração no Kingstone College da Grécia.
Por isso é fluente em inglês. Já não sou tanto.
Está na hora de praticar!
Onde você mora, em Katerini ou Larissa?
Em Katerini. Minha mãe mora em Larissa.
Estou hoje no Monte Olimpo. O velho monastério cristão fica bem no meio da montanha.
Você me levará aí?
Sim, o trarei aqui!
***
Amor acontece assim, à primeira vista? Vou deixar o estranho, de tão longe, entrar e tomar posse? Seria ele o unguento para a ferida ainda supurada, ligeiro para secar a borda, certeiro para limpar o meio e o fundo, onde a culpa de abandonar o outro no meio do caminho ainda mexe, e remexe, ao inverso do imaginado, sem tempo certo para abrandar?
Vou me entregar assim, desprevenido, ao devaneio, como se mundo tivesse dado quase uma volta, sem saber onde piso, terra de sonhos e mitos, de deuses que brincam com os homens, fantasiam e trapaceiam, só para ter, tudo e ainda mais um pouco, capricho apenas e não mais?
“Bota uma venda nos olhos de Janus voltados para trás, olha para a frente”, sussurra o cupido no meu ouvido. Será? Desconfio, novamente, mais uma vez. Rumino o incerto, dúvida crescente. Por fim, rendo-me ao querer mais forte, chegando, cegando, virando pelo avesso. Por que não dar um pouco mais de corda e ver aonde chega?
***
Dia 9
Me abraçaria com paixão?
Iremos juntos ao paraíso. Gosto demais de você!
Quando paro para pensar no que está acontecendo, chego à conclusão que não é real, que estou sonhando. Preciso acordar desse sonho. Acontece o mesmo com você?
Sinto como sendo real. É 100% real. E estou com sorte. Você se arrepende?
Eu te desejo, quero estar junto.
Opa! Gosto disso! Sou teu também, falo sério. Gosto do teu sorriso, do teu rosto. Você é terno, é tudo que desejo. Quero te beijar.
Parece que está lendo meus pensamentos.
Ainda bem que pensa assim.
Coração e alma.
Eu também, para o que der e vier. Gosto de você como homem. Quero estar junto e fazer amor. Espero que sinta e deseje o mesmo.
***
Dia 10
Te quero tanto!
Você é muito gostoso.
Com você eu quero tudo. Estou apaixonado. Não importa o que rolar.
Quero que me abrace forte, com ternura e posse, que me tenha com desejo e paixão, me leve para regiões remotas do prazer, onde o rio encontra o oceano.
Gostaria tanto! Quem na vida não gostaria de ter um cara tão terno e sensível, tão bonito, ao seu lado e na cama?
***
Dia 11
Não me esqueço do filme Zorba, o grego. Maravilhoso e triste. A Grécia mudou desde esta época?
Não, o país continua o mesmo, exceto Atenas que parece um bordel. A Grécia continental e a maioria das ilhas são a mesma coisa. Na capital, a região do Parthenon é mais liberal.
Então, onde poderíamos viver esse sonho?
Em algum lugar no Monte Olimpo, num vilarejo chamado Litochoro. Veja no Google Map.
Litochoro… O pessoal de lá nos aceitaria?
Não podemos nos expor, as pessoas não entenderão.
E como poderemos viver juntos?
O que fazemos na cama só é da nossa conta. Mas devemos parecer pessoas normais, como as outras, não beijar ou segurar a mão em público. Eles não aceitariam. Acha difícil?
Você não acha? Será impossível vivermos juntos.
***
Dia 12
O tempo ocupou o seu lugar. O silêncio tomou conta. A razão voltou ao eixo. O coração ficou calado. A alma está em silêncio. A vida continua.
O que você está querendo dizer? O que aconteceu?
Acho que estávamos sonhando, a vida não é assim. Continuo te querendo, mas é necessário o equilíbrio. Cada um de nós tem a própria vida. Não fica desapontado. Tente entender, dê um tempo para pensarmos com a cabeça fria.
Entendo, se você quiser interromper … consigo entender.
Não se trata de romper. Precisamos de um momento de equilíbrio. Quero você, seu amor denso e terno. Isto não mudou. Precisamos encontrar a melhor maneira de realizar o sonho. Talvez tirar férias juntos, fazendo um giro pelas ilhas gregas.
Você está certo. Uma boa ideia, além de sensato. Vamos dar uma pausa e ver a situação tal como ela é. Compartilho os mesmos sentimentos.
***
Primeiro, engano. Digo que sim, quando sei que é não. Enredo, encorajo, acalento, do ofício de despertar o desejo conheço a rima e a métrica. Depois boto em dúvida, aposto no incerto, embaralho as ideias, faço e desfaço os nós, um atrás do outro, incerteza crescente.
Mas o outro não promete e pede o impossível, o diferente parecendo igual? A proteção do teto e das quatro paredes do quarto é garantia para o amor que deve ficar oculto? Algum segredo escapa ao olhar curioso, que acompanha os passos, não deixa de perceber o gesto, intercepta o sentimento e decifra o olhar, vasculha o verso e o avesso do acontecido, feito gralha empoleirada no beiral da casa e no fio do poste, prisioneira do triste de pouco ser, senão o de sempre e costumeiro, destino amargo, seco e venenoso?
Existiria um canto no Olimpo, a montanha agora dos homens, onde o sossego chega no final de tarde, de nuvens abrasadas pelos raios do sol poente, fulgor que se espraia e estremece a retina de olhos desesperançados, existiria ali um pedacinho abençoado de chão para o amor jamais aceito?
Não estou me deixando trair pelo anseio de ser dele, o amante vigoroso e terno? Esse cadinho de entrega não é da perdição a ponta, do caminho sem volta o começo?
Dia 13
Meu caro, está em casa? Como disse, continuo com grande expectativa. Tem algo único que devemos preservar na relação: muito desejo, os mesmos sentimentos, sonhos e, a cima de tudo, paixão e ternura. Não podemos perdê-la, mas alimentá-la com curiosidade. Embora estejamos geograficamente distantes um do outro, a atração nos aproxima. Adoraria vê-lo totalmente nu e nós dois juntos, amando simplesmente. Não me abandone. Seja meu companheiro, mestre e discípulo. Te amo muito, tanto!
Amo tudo que acaba de escrever. Estaremos juntos.
***
Dia 14
Estou com tesão e te desejo mais do que pode imaginar. Penso em você, muito! Esse rosto é para beijar e beijar, incansavelmente. Te amo … adorei as fotos da sua cidade, achei legal compartilhar momentos da sua vida.
Gostaria de estar junto.
Quero muito, tanto!
Sofro, às vezes, por não estar ao seu lado.
É o que sinto. Te quero tanto, adoraria estar com você.
Te beijo inteirinho, com ternura e anseio.
Deixa-me tirar tua roupa, puxá-lo para perto de mim.
Aperta-me em teus braços e tremerei de desejo.
Olho em seus olhos para saciar minha sede.
Beijo ao redor do teu pescoço e falo no teu ouvido: “Quero estar com você e isto não terá fim.” Vamos nos casar. Viveremos numa ilha pequena, Ithaca, da história de Odisseia. Ou então em Karpathos, perto de Creta, a leste. A Grécia é pequena, mas abençoada. Há milhares de lugares para se ver. Os deuses uma vez disseram: ‘Uma pessoa gastará toda uma vida para conhecer a beleza da Grécia.”
Interrompo a conversa. Melhor não seria continuar sonhando em silêncio, alimentando-me de sentimentos roubados, do outro a paixão confessa, a que cega e fantasia? Tem prazer maior? Reler as mensagens, de trás para frente, a última, a anterior e a que veio antes, não provoca arrepio na pele e tremor no peito, meio sorriso de enlevo e olhar de soslaio, ao sentir do cativo a emoção, daquele instante o entusiasmo e devaneio, fluxo aquecendo a corrente sanguínea, entressonho ainda maior?
Sobreviver do outro, devorar seus sonhos. Vampirizar emoções para aquecer a solidão, artifício e ofício, não é da vida o avesso? É o que quero, e não é o que já venho fazendo, sem pena e arrependimento? Não é do destino o mais triste e ruinoso, da vida o mais cretino e desprezível? Navegar nas redes em busca de aventura, assim e desse jeito, não é escolher da noite o mais sombrio?
Dedilhar mensagens, no ritmo ensandecido da emoção, a mais eletrizante, do tesão o mais intenso e insólito, do prazer o mais solitário, virtual e real, aqui e agora, tão próximo e tão distante, tão envolvente e tão frio, não é morrer aos poucos?
A vida não gira noutro eixo? Não está ali, à espera, no olhar de relance, que convida e aguarda só mais um gesto? Não brota no toque casual de mãos que entregam e recebem, além do objeto, a emoção de contrabando, insinuante, crescente? Não surge de repente na esquina, no olhar que acompanha os passos, desnuda o corpo, aquece a alma de anseio, até a imagem do desejo desaparecer, anônima, no meio da multidão? Não renasce no sorriso que sugere e seduz, olhos que cativam e devoram, ele aproximando-se, irresistível, para sussurrar no pé do ouvido: “Te quero”? Sabendo disso tudo, e um pouco mais, por que repito e insisto, mesmo assim?
Dia 15
Oi Pedro
Oi Teo. Tudo bem com você?
Sim, e você? Mora em Ribeirão Preto?
Sim e você em São Paulo, não?
Sim, moro em São Paulo. Vem sempre aqui?
Às vezes. O trabalho e os estudos limitam um pouco minha “necessidade” de São Paulo. Queria frequentar mais, mas no momento não consigo.
O que está estudando?
Faço especialização em Controladoria.
Mestrado?
Não, ainda não. Quero tentar na Unicamp, mas me enrolei este semestre. Quem sabe um dia eu me aventure, apesar de não ter vocação para a docência. E você, ainda trabalha?
Tenho uma empresa de consultoria.
Você parece um cara maduro, muito atraente.
Obrigado. O que anda procurando? Amizade ou algo mais?
Honestamente? Há algum tempo, deixei de criar expectativas. As pessoas lamentavelmente tornaram-se muito volúveis e os relacionamentos voláteis demais. Apenas deixo acontecer, sem esperar muito. Deixo a natureza fazer o seu trabalho. Está em busca de algo?
Curto boas amizades. Quando se tornam algo mais sério e envolvente, geralmente sou aberto.
***
Dia 16
Apesar de ter me tornado um tanto cético quanto a relacionamentos, permito que as coisas aconteçam.
Posso fazer uma pergunta mais direta, com risco de estar sendo invasivo?
Fique à vontade.
Casado?
Não, não! E você?
Também não. Namora com homens?
Já namorei garotas, mas lá na adolescência. De uns bons anos prá cá, homens são minha preferência para relacionamento.
Descendente de italiano?
Sim, neto. Está enroscado com alguém?
Não, numa relação de terna amizade. Ativo ou passivo? Responda se quiser.
Sou ativo. Nunca fui passivo, não tenho curiosidade pela coisa. Você também tem cara de ser ativo.
Aberto. Tem fotos suas, recentes?
A última no Face é recente. Por não me achar muito agradável aos olhos, não costumo fazer tantas fotos.
O que despertou seu interesse por mim?
Sempre gostei de homens mais velhos. Quando o convidei, apenas o achei bonito. Não esperava que a conversa fosse rolar. Estou na casa de uma amiga. Posso te chamar mais tarde?
***
Dia 17
Fale mais de você.
Falar sobre mim é sempre uma tarefa difícil. Vou começar pelas falhas. Costumo ser um pouco complicado aos olhos dos outros. Por ter uma vida bastante corrida, dou prioridade às minhas atividades discentes e ao trabalho. Costumo ser tranquilo, quase parado. Atributos físicos: 1,81 de altura e 75kg. Olhos e cabelo, já viu nas fotos.
Tenho 1,75 e peso 85kg. Sobrepeso. Quando levo os exercícios físicos a sério, consigo baixar uns quilinhos.
Está ótimo! Gosto de gordinhos, devo confessar.
O que gosta de fazer com eles?
Bem, depende do momento e do tipo de relacionamento. Se namoro, faço tudo que um casal faz, sexualmente falando, se a conotação for essa.
No momento, tem um relacionamento permanente?
Não. Se o tivesse, não teria continuado a conversa. Costumo ser bastante fiel. Que idade você tem?
Fiz 50 anos no início do ano.
Parece mais jovem. Meu último namorado tem agora 59.
***
Dia 18
Mora sozinho?
Não, com minha mãe. Não amadureci o suficiente para sair de casa. Pretendo sair ao terminar a especialização. Gosto de ter uma certa segurança.
Deixei a casa dos pais para fazer faculdade. Nunca mais voltei a morar com eles.
Onde você mora em São Paulo?
No Itaim Bibi. Conhece?
Sim, um bairro agradável. Tem muitos restaurantes gostosos. Onde tem comida, tem alegria. Vi sua coleção de orquídeas. Também gosto de plantas, mas não tenho tempo para cuidar. As poucas que tive, mandei para a fazenda.
Voltando a falar de sexo, como é o “Pedrinho”?
Bem “Pedrinho” mesmo. Hahahahahaha. Não se preocupe com a conveniência das suas perguntas. Prometo responder todas!
Pequeno?
Pode parecer estranho, mas nunca medi. Vou mandar uma foto.
Opa! Espero que trabalhe direitinho! Rsss.
Ah, sim, trabalhar, trabalha! Faz um xixi como ninguém!
Parece muito gostoso.
Dizem que sirvo para alguma coisa. Até agora, ninguém reclamou.
***
Dia 19
Estou querendo te encontrar. Acha muito cedo?
Podemos continuar conversando por aqui e ver no que dá. De antemão aviso: tenha paciência. Meus dias são realmente limitados e minhas atividades limitantes.
Sem pressa ou ansiedade.
Não acho cedo, mesmo porque um encontro não significa sexo ou algo assim. Talvez curiosidade para conhecer.
Também tenho uma vida de trabalho intensa. Deixa pouca sobra, fora dos finais de semana. Meu ap é tranquilo, caso queira ficar.
Num primeiro momento, talvez seja melhor eu me hospedar num hotel próximo a você. Se houver encontros posteriores, posso ficar no seu ap.
Pode ser, claro.
Tudo bem se continuarmos outra hora? Estou com sono e amanhã caio cedo da cama.
***
O que o outro agora oferece não é da vida o seguro e o previsível, o pouco e o simples, os dias e as noites sem mistério e devaneio, o planejado e o calculado, do sentimento o quase árido, da paixão o vazio, autorretrato pincelado de ironia? Toparei esse jogo sem emoção à vista?
Mas não perderia do jogo exatamente o que faz sentido, virando o avesso do desejado, da surpresa o previsto, do assombro e espanto, o atrevimento e arreganho? Por outro lado, o sentido da aventura não estaria em navegar no seco, remoer de fora para dentro as fibras desidratadas do peito e do coração, fazer do sequioso e sedento o encharcado e farto, do árido o úmido, do murcho o viçoso, do mirrado e quase morto o pulsante e cheio de vida?
Seria isso mesmo?
***
Parte 2
Primeiro dia
Bom dia, meu caro. Espero te encontrar. Será?
Bom dia, querido…hum, bem provável.
Está sendo maldoso comigo! Nem sim, nem não, um talvez, incerto, duvidoso. A incerteza, ora do quero, ora do não quero, acha isso gostoso?
Não sei, estou no trabalho, nem consigo pensar em sexo agora… e você, o que acha mais gostoso?
Na dúvida que fica no ar, esse quase querer, não querendo, confunde. Elusivo, você deixa um rastro de sedução no imaginário. Nada poderá ser mais gostoso do que ver e sentir você com tesão.
Delícia.
***
Segundo dia
Deve ter acabado de chegar do trabalho. Imagino você tirando a roupa, entrando no box, tomando uma ducha. Deve pensar: “Vou nessa?” Pressinto o tesão chegando de contrabando e você se pergunta: “Por que não?” É nesse fiapo de esperança que sonho.
Eu adoro ler essas coisas!
E eu escrevo porque te desejo. Quero estar perto de você, sentir a energia fluindo, suas mãos roçando displicentemente os lábios, insinuando, querendo. Então me puxa para sentir o calor do seu corpo.
Delícia!
Beijo seu abdômen, sinto o impacto das estocadas cada vez mais fortes. Você segura o urro na garganta, espera mais um pouco. Arrebatamento e estertor no único instante em que as fronteiras da vida e da morte se confundem, ali, naquele momento em que me abraça e diz: “Te quero!”
***
Terceiro dia
O sono veio inusitadamente rápido, porque acalentado em seus braços. Despertei ao amanhecer, com o vento frio entrando pelas frestas da persiana. Puxei a manta de lã, por não querer sair do seu lado. Senti seus pés tocando os meus, devagar, sem anseio, querendo e dando afago. Nessa hora, em que os olhos e o corpo ainda não se despertaram da letargia, um rasgo de energia atravessa a coluna e me faz curvar, quase tremendo, para me recostar no peito que me acolhe sem ter ansiado. Ah, esse calor aquecendo devagar, só aconchego!
Deixo-me envolver pela lassidão, sinto as mãos deslizando nas costas, dedilhando as costelas sob a camada fina de músculo quase macio. É carne trêmula. Seus dedos a decifram, penetram segredos. Tocam o peito e roçam o mamilo, lentamente, até endurecerem, secos. “Ah, mis pechos de arena!“
Por fim, abraça forte e diz, mordiscando minha orelha e beijando meu pescoço, para me acordar de vez: “Bom dia, meu querido! Sonhou comigo?”
***
Quarto dia
Gosto de suas mãos porque têm uma pegada forte e são suaves quando acariciam. Tateiam em busca da carne sob a camiseta de algodão. Apertam, procuram, possuem. O frio e liso da superfície, o efervescente e misterioso da profundeza. Extraem.
Eu as tomo entre as minhas para ungi-las do banal e pequeno, gesto contido e calculado, para sentir aqui e agora a fragrância almiscarada de macho, inconfundível, exalando pelos poros. Seus dedos se cruzam com os meus, penetram por entre vãos, se tocam, se apertam, se enlaçam.
Sua mão pousa um instante no braço da poltrona. Momento de langor e espera. Voltará a procurar as minhas? Ou caberá ao beijo atrevido e cálido despertar novamente o desejo?
***
Depois de certa hesitação e dúvida, armou-se um jogo sutil de sedução. Nada é definitivo como o sim ou o não, tudo é incerto e ambíguo. Talvez. Um dia, quem sabe.
Desconversa, quando cansado, dá boa noite e deseja: “Durma com Deus”. Quero dormir com é com ele, o macho vigoroso e terno que passou a habitar o inusitado do pensamento. Sinto uma atração cada vez maior, corroendo-me por dentro, sem que consiga colocar anteparos. Não os quero. Desejo-o, cada vez mais. Sinto estar perdendo o controle. Logo eu, o jogador tão experiente, que se antecipa ao lance em que o outro se enlaça e se perde.
Sinto os papeis invertendo-se. Assusto-me. Pago para ver, arrisco novamente.
Quinto dia
Desconhecia a melancolia em seus olhos. Eu os conheci sorridentes e maliciosos. Soube que estava doente. Sofri a ansiedade de cada detalhe narrado, o doído e sentido virou pesar e cadinho de sofrimento, passageiro por estar desaparecendo, que Deus ajude e console.
Acaricio as mechas de seus cabelos, meus olhos encontram os seus, mergulham nos seus, doce vigília!
Umedeço sua fronte e toco de leve seus lábios com o pano macio de algodão. Afago seu peito e sinto o coração palpitar, fazendo o meu tremer de espera e o pensamento dar voltas no mesmo eixo de desassossego, até serenar com o toque da mão procurando a minha, prendendo-a na sua, gentil algema.
Os minutos e as horas estacionam-se, imprecisos, nas bordas do tempo.
***
Sexto dia
Como aragem de manhãs fugidias, o desejo refresca e alimenta. É abraço terno de corpos colados um ao outro, que se querem e não se deixam. Apego de mãos que se procuram e se prendem. Bafo morno na nuca. Membro teso decifrando segredos da carne, anel de núpcias, presente de Dionísio, porta de entrada do paraíso.
Ter e possuir, ser do outro um pouco, afago que se quer doce, sorriso que se quer manso, silêncio que ata e desata os nós do coração.
Ah meu querido, por que esse silêncio de secar a fonte antes de matar a sede? Por que o rastro de incerteza na vereda que apenas começou? Por que a tortura de expor o avesso, quando desejo o verso da alma e o inteiro do corpo?
***
Sétimo dia
Bem querer. Do mal, o avesso e o contrário. Riso solto, ao vento. Bem querer de estar junto, em silêncio. No ausente, sofrer miúdo. Na falta, querer de volta.
Pensei em você, sem desejar sexo. Só sentimento, querença de gente simples, daquelas bandas do Sul de Minas. Vontade de estar perto, jogar conversa fora. Contar caso. Falar de coisas pequenas. Lembrar coisas boas. Querer bem tem desse encanto, sossego, não carecer de palavra, nem de gesto.
Se adiantar no pensamento, antes do feito. Preferir a dúvida ao certo, o irregular ao bem traçado. Só ter uma certeza: lugar garantido no cantinho esquerdo do coração.
***
Oitavo dia
Silêncio tem eco de palavras não ditas, reservadas no canto e na beira, conjuradas, desfeitas e refeitas, querer tinhoso de estar ao seu lado.
Silêncio anda devagar e de banda, dá volta, faz entremeio, é ponto sem nó e nó cego, viés no corte e aperto no laço, coração amarrado no seu.
Silêncio é gramática pelo avesso, verbo só no presente, ideia no substantivo, vontade no mesmo lugar, o canto esquerdo da sua cama.
Silêncio é beiço no cangote, mordida no ombro, abraço de moer tristeza, estocada de querer o raso e o fundo, beijo de atar o agora no depois.
Silêncio é você dentro de mim.
***
Nono dia
Não vou, não vem. Espera contada em grãos, coração em sobressalto, bússola sem norte, cuia que não entorna caldo. Desnorteio, tesão que brocha, amor que seca.
Ficar no duvidoso e incerto. Desacerto de não ser, querendo, ralar sentimento e dar nó nas tripas. Tem agonia maior?
Mas o coração entende? Encrespa, insiste no incerto e na curva, prefere a sombra de aroeira e a ardência da urticária, sofrer por gosto e vontade.
Reza de benzedeira não corta o desejo. Só a vontade amansa.
***
Décimo dia
Anseio e espero a resposta que não chega. Pode vir daqui a pouco ou só no começo da madrugada. Desejo não tem hora. Chega de pinote, em desassossego, ou devagar, como vento fraco. Coração é assim, quem há de entender.
Sentimento pode ficar largado na beira ou na encruzilhada para esmorecer devagarinho. Para matar de sede, sonega gota d’água. Para matar de tristeza, amordaça, aquieta e esquece. Tem escapatória para a solidão?
Mas o desejo não reacende ali, quase na agonia do fim? A mão, que um dia esteve presa na sua, busca o caminho de volta. Desliza devagar sobre a calça, abre a braguilha. Toca e sente, o quente da carne, o hirto do ferrão. Quer e consegue. Abraço que enlaça e não solta, mãos que apertam a carne e unhas que arranham as costas, lábios que se encontram, dentes que mordem e arrancam pedaços da alma.
Vertigem do rio que transborda, torrentes que vertem pelo despenhadeiro, abismo onde os destinos se encontram e se perdem.
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Décimo primeiro dia
Tem hora que penso, no calado do dia e lentidão da noite, que nunca mais vou encontrá-lo. Passa sem chegar, como a vida. Viver da sua ausência, alimentar-se dela. Bate uma tristeza, de murchar e cair uma flor do pé de orquídea. Rebate a esperança, algumas ainda não sobram nos ramos entrelaçados, atravessando os dias?
Imagino-o alegre, andando descalço pela casa. Abre a janela para olhar a paisagem, a do lado de fora e a que habita seu coração, onde uma nuvenzinha pousa na banda esquerda do céu. Proseamos nesse banquinho de algodão, sem pressa do dia acabar.
Ora penso, melhor seria arrumar uma namoradeira e botar na sala. Ficar juntinho de você para ouvir o silêncio. Ou então jogar conversa fora, riso solto. Só querença e sabedoria. Sentir o vento roçar seu peito e resvalar no meu.
Rir de sacanagem e de alegria, riso maroto, que assente e quer.
Suspirar de gozo e dizer: “Delícia!”
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Décimo segundo dia
Deixo para trás o som cristalino e cortante da música, como a angústia na tarde de outono.
Desejo e quietude de apenas ser e tudo ser, nesse instante, ao seu lado. Coisa do coração, virado do avesso, um pouco e sempre mais. Ah por que o silêncio de tecer e embaralhar os sons, de tão longo, de amordaçar e sufocar as palavras, de tão inclemente?
Amor de contrabando, desprevenido, na ida e na volta, amor bandido. Quero, ainda mais, mesmo assim.
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Medindo as palavras no pouco, envia-me o bom-dia, seco e insonso, ou a boa-noite carente de anseio. Apenas, nem mais, nem menos. Cede o canto direito do leito, ainda quente, para eu dormir com os anjos. Tem desprezo maior, esse não querer, nem um pouco?
Tinhoso, insisto ainda mais, mais um pouco.
Coração, mesmo desfeito de sentimento, não pode ser cevado e cativo em artimanhas de sedução? Se o laço for bem dado, com corda de couro trançado, não rói, nem rompe. No sonho tudo pode, pode até falar com os anjos. Amor entra de contrabando e toma posse. Pois então, por que não?
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Décimo quarto dia
Velo teu sono esta noite. Você, em estado de graça, brincando com os anjos, como criança. No sonho e no céu tudo pode. Aqui, no seco e vazio de apenas estar ao seu lado, na noite que embala e no regaço que acolhe, nada posso. É desejo que se freia, no escondido do coração, ternura que se esvai e se perde, quase agonia.
Sonho acordado. Quem sabe os anjos me convidam? Posso entrar no céu, assim de pés sujos? Segurar sua mão e sentir a sede que não mingua? Posso, no provisório de ser, sonhar assim, desse jeito?
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Décimo quinto dia
Enternecido de me ver assim – recolhido no triste sem eira nem beira, destino que não chega no lá nem no cá, querença de queimar o bruto da carne e remoer sentimento no lado direito e esquerdo do coração, no raso e fundo da alma – pede permissão para deixar o céu. Ele, um dos anjos que brincam com você em sonho, vem me fazer companhia.
Só alegria e consolo, o triste bem longe! Me leva e me traz, de lá e para cá, no bem querer, riso maroto que ilumina e aquece, nascente de água mansa que refresca. Pega minha mão e me leva em voo brando para o observar do alto em sono profundo. Segreda no meu ouvido: “Ele te quer muito!”
Décimo sexto dia
O cupido de cabelos cacheados ainda me faz companhia. Consolo ou arteirice? Não sei, deveras. Pergunto no remoer da dúvida e embaraço do desconsolo, para mim mesmo, sem atrever inquerir direto, cabisbaixo: “Insisto? Vale a pena?” Espero. É assim mesmo, mesmo assim, que nem água de remanso que dá uma volta, mais uma, e para, parecendo aguardar na quietude. O travesso do olhar, quase inocente, que de tudo entende e mais um pouco, aconselha, sem usar da palavra, por não carecer: “Tenta você mesmo!” Reteso o arco e disparo, mirando o certeiro, do meio do peito um pouco para lá, do coração o cantinho esquerdo. É pedido, quase súplica, que deixo escapar, da esperança o resto, um tiquinho apenas: “Fica comigo!”
No profundo do adormecido e no inesperado do sobressalto, ele, o amigo tão desejado, bota a mão no peito, resfolega, suspira apenas, remoendo o mistério do sono. Na dúvida, encaro o anjinho de frente e desta vez quase pergunto: “Acertei?” No arquear da sobrancelha, a resposta que pouco alenta: “Talvez, quem sabe.”
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Perdi o jogo, dou a mão à palmatória. Deixei-me enredar pelo desejo. No repente das horas e no inesperado do coração, a aventura virou tormento. Destino tem dessas artes, embaralha e dá nó cego, oferece o avesso do imaginado. Revés, tocaia na curva, dá bote certeiro, agarra e não solta. No desespero, resisti à artimanha do jogo em desequilíbrio com o sonho, fuga e enlevo passageiros.
Mas como negar o sentimento que tomou conta? Não é o que quero e, ao mesmo tempo, recuso? Sonhei acordado. O triste de não ter virou amargura. O que fazer com o desejo virando tudo pelo avesso, mais uma vez, outra vez e novamente? Pela primeira vez, em tantos anos, estou inseguro.
Vencido no próprio ofício de atirar o laço e dar nó, pergunto-me: Paixão tem cura? Sinto-me ridículo, pequeno e desvalido. Mas vale a pena o sofrimento? No vai e vem da dor que assalta, tenho uma pista, fresta na janela que filtra a luz vindo de fora. O outro merece tanto? Talvez não. É tudo aquilo que insinua e se pretende como macho, voraz e terno? Será mesmo senhor e mestre de prazeres que corroem e enlaçam, por dentro e por fora, o coração trêmulo? Consegue ir além do que já foi? Não se traiu no espontâneo das falas como oposto e contrário do amante que botou assento no meu imaginário? Não seria essa a razão para tanta hesitação? Vá saber, não tenho certeza, só suspeita, crescente. Na dúvida que ora assalta, desprevenido e não querendo ser, só a decisão consola: dar paradeiro na agonia, acordar do pesadelo. O tempo tudo apaga, a memória tudo esquece, o mais alegre, o mais amargo.
Sufoco o desejo e bloqueio as lembranças, amasso, mais uma vez e outra, a argamassa para rebocar o estrago no coração. Artifício antigo para vasculhar a rede, leve e solto, atrás de aventura, trama misteriosa, do desconsolo a cura. Desta vez, porém, tem a despedida, uma delicadeza.
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Mais um dia
Ah meu querido, mitiguei a espera no silêncio moroso dos corredores, no pulsar melancólico das horas entre um cômodo e outro da casa, no ausente do conforto e do bem querer, distantes um do outro, querendo em pensamento, energia que vai e vem, sufoco de palavras aprisionadas na garganta. Doce e amargoso de ser da mensagem cifrada o intérprete, do sonho aquele que alhana e apaga.
Tranquei o coração com as sete chaves do agora ansiar o avesso, dei muitas voltas, à direita sempre e nunca ao inverso. Purifiquei a boca e a língua com broma de urtiga macerada em pedra lavrada para não dizer o que a vontade ainda pede. Botei nos olhos venda de algodão tecido na roca para não enxergarem teu corpo nu, estendido no leito à minha espera. Tapei os ouvidos com cera para não ouvir as palavras, ora roucas, ora cristalinas, certeiras no pegar, enlaçar e dar nó no sentimento, sempre frouxo, de afago sedento, de querer a canga, angustura cada vez mais estreita.
Meu querido, fechei meu corpo e aprisionei minha alma, para seus não serem mais.
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