Nós duas
Abre o bauzinho de madeira onde guarda documentos e lembranças. Olha as fotos antigas da família. Lembra-se da mãe e de seu ar terno e resignado. Nutre sentimentos contraditórios em relação ao pai, falecido há poucos anos. Arrepia-se ao se recordar de seu rosto transtornado de amargura e de seus olhos injetados de rancor. Gostaria de esquecer, mas não consegue.
Pega a carteira de identidade de Norma e a coloca na bolsa. Prepara-se para sair. A noite é sua, de superlua manchada de sangue. Carrega um pouco mais na maquiagem, veste a saia curta de couro sobre a meia-calça rendada. Acaricia a perna tatuada de memórias, iluminadas pela luz fraca do abajur, antes de calçar as sandálias de plataforma alta, para aumentar um pouco a altura. Lembra-se de ser chamada, carinhosamente, de baixinha. Sorri e, em seguida e por alguns instantes, deixa-se invadir pela melancolia.
Entra no bar, onde a música ao vivo mistura-se e se confunde com a fumaça de cigarro e olhares penetrantes, interrogadores, lascivos. Tira o colete de couro. Bebe devagar o conhaque barato, coloca o copo na mesa. Observa quando se faz o intervalo e o trio deixa momentaneamente o tablado semicircular, três degraus acima da pequena pista de dança. O apresentador conta piadas e brinca com o público. Pergunta se alguém na plateia arrisca substituir, por alguns minutos, a crooner.
Norma percebe que é a sua hora. Levanta-se da mesa e se aproxima do diminuto palco. Ele pergunta o que vai cantar. Sussurra em seu ouvido a informação. Sobe os degraus que imagina levarem ao desconhecido e observa o apresentador conversar rapidamente com o pianista. Ele não se faz de rogado e dedilha de improviso os primeiros acordes da música. Ela lança em sua direção um sorriso de cumplicidade, quase debochado, levanta o indicador num movimento preciso para dar o tom e, como uma estrela perdida na noite, encara a plateia na penumbra. Aos primeiros acordes, sua voz ecoa pelas sombras, vinda de um lugar remoto onde a dor e o lamento se fundem no último apelo:
Ah meu amor não vá embora
Vê a vida como chora, vê que triste essa canção.
Eu te peço, não te ausentes,
Pois a dor que agora sentes, só se esquece com o perdão.
Oh, meu amor se tu soubesses,
Como é triste a minha prece, como dói a solidão.
Eu te suplico, não destruas, tantas coisas que são tuas,
Por um mal que já paguei!
Oh meu amor tu voltarias, e de novo cairias,
A chorar nos braços meus.
Passado o momento de perplexidade, o público aplaude calorosamente, enquanto alguns se levantam, batendo palmas e pedindo bis. Ela olha para o apresentador sem saber o que fazer, enquanto ele pede ao pianista para voltar a tocar. Desta vez, a voz brota das nascentes em seu peito, misturando versos com improvisos que dilaceram alma, segurando um pouco mais as notas em tons que misturam o som cristalino de cristais com a rouquidão embriagada de angústia. Desce do palco sob aplausos, gritos e convites despudorados, pega a bolsa e o colete e deixa o bar.
Caminha pela calçada envolta na tênue aragem que embaça a luz vinda dos postes. A Norma que quis esquecer para sempre está renascendo, brotando dentro de si como uma vaga de desejo que remói as entranhas, toma conta dos pensamentos, invade os vasos sanguíneos, contrai o coração, algema sua vontade. Não tem como resistir ao uivo e langor dessa loba errante. Ela está de volta, para acompanhar sua solidão.
O carro para e o motorista, com ar de cafajeste, abre a porta. Entram no apartamento despindo-se, agarrando-se. Entregam-se ao sexo selvagem. O dia está amanhecendo quando pega um taxi para voltar para casa. Olha-se no espelho, passa a mão no rosto, observa as manchas do rímel e da sombra ao redor dos olhos escorrendo pelo rosto com o suor. Limpa o que restou da maquiagem com um pedaço de papel higiênico. Lava o rosto na água fria. Contempla o semblante cansado de Norma e Helena, almas siamesas. “Sim, nós duas”, sorri.