Lua errante
A brisa que entra pela janela semiaberta o desperta. O sopro da aragem fresca lembra as madrugadas nas montanhas do Sul de Minas. A indesejada carícia resvalando pelo corpo o faz virar-se na cama, sonolento. Abre devagar os olhos e se surpreende com a luz incomum vindo de fora. Levanta-se e se aproxima da janela. Emergindo na margem da densa formação de nuvens cinzentas, a lua ilumina um pedaço da noite, a que se perde no horizonte e aquela que envolve seu coração. Acompanha o lento movimento, obscurecido transitoriamente pelo manto arrevesado, espraiando o fulgor de raios prateados por trás da borda vaporosa, até surgir resplandecente, dominante na escuridão efêmera daquele momento, lá fora e dentro de si. Está para amanhecer. As lembranças são doloridas.
Combinaram de se encontrar no final da tarde na Piazza Navona. Viera a trabalho, ela dera um jeito de se inscrever no curso cujo conteúdo conhecia de sobra, pretexto para estarem finalmente juntos naquela semana de primavera em Roma. Chega primeiro. Àquela hora, o local começa a ficar livre da multidão de turistas e das barraquinhas de pintores e artesãos que sobrevivem da pequena arte. Caminha em direção à Fonte de Netuno, no extremo da praça. Observa o entardecer. Aos poucos, a luz poente ilumina com mais intensidade a cúpula do templo e o telhado do casario, até o cenário ser envolvido pelo bafejo morno dos raios que se espraiam pelo ocre das fachadas, despedida do dia que se dilui em tons claros de azul e rosa, envolvendo a imensa nave em que a praça se transforma ao ser tragada pela noite, instante de estertor e lassidão, imagem passageira, diluída em mera lembrança pelo cintilar intruso da iluminação pública.
Caminham de volta ao hotel, depois do jantar num dos restaurantes da antigamente agitada e agora decadente Via Veneto. O silêncio é quebrado pelo som ritmado dos saltos dos sapatos na calçada e por poucas palavras que não conseguem esconder o pesar, nem conter a dor espelhada no brilho do olhar que ainda reluta em aceitar o fim anunciado. Observa-a se despir na penumbra e deixam-se levar por carícias mornas e pelo sexo desprovido de entusiasmo. Toca as curvas do corpo que acabou de possuir e que se recosta no seu. Não distingue o traçado das lágrimas no rosto amparado pelo travesseiro, nem o leve tremor dos lábios emudecidos. Sabem que é a despedida, sem volta.
Anos depois, ainda questiona o sentido da separação. A ansiada liberdade não o livrou da angústia, nem o recente sucesso de suas obras aliviou a solidão. Os dias e as noites, exclusivamente seus, são compartilhados com os sons, ora envolventes, ora exasperantes, do silêncio. Olha para as obras de arte que o cercam e se comove. Deixa-se consumir pela beleza e pelo prazer de a traduzir em palavras. Brinca com elas. Aprendeu a manejá-las como o pintor que manipula as cores para traçar na tela o movimento da luz sobre a paisagem, dando a impressão de ser real. A sensação de plenitude atenua, por um átimo de tempo, a mais simples e cruel verdade: continua terrivelmente só.