Mamulengo
“Acelerem o ritmo, mais depressa, mais energia, vamos! ” Corre para lá e para cá, dá uma paradinha e flerta com a plateia, bota a mão na cintura e rebola, repete a primeira fala, dirige-se ao aparador e pega o leque, caminha sedutoramente em direção ao pretendente da outra, deixando à mostra parte dos seios arfantes, faz a longa fala sobre suas origens na fazenda de café frequentada pelo Imperador, aproxima-se dele e deixa-se enlaçar no impetuoso abraço, abre sua braguilha e agarra seu pau. Olha-se no espelho e sorri. Enxuga as gotas de suor, limpa a pesada maquiagem. Esfrega os lábios com a toalha de papel e livra-se do batom escuro.
O corpo cansado cai novamente na poltrona. Conseguira enganar a solidão por algumas horas. Estivera tão perto dos personagens criados para espantar o silêncio dos corredores e o próprio desalento! Comovera-se com sua história. Rira, de ir às lágrimas, de suas peripécias. Sonhara os sonhos delas. Transformara-se nelas. Olha-se novamente no espelho e sente um leve tremor no peito. O traçado das rugas mais acentuadas, as pálpebras esticadas por sucessivas plásticas, o verde dos olhos embaçado pelas cataratas, os cabelos cada vez mais brancos, sinais cruéis do fim anunciado. O pensamento gira em eixos diferentes, misturados. Perde a noção do tempo. Perde-se no irregular de suas bordas, tragado por elas. Ouve o pulsar do coração, cada vez mais lento. Deixa-se invadir pela melancolia do cenário ao redor.
Lembra-se dos tempos de estudante em Munique. No intervalo das atividades acadêmicas, fazia longas caminhadas pelo Jardim inglês, próximo da universidade. Encontrava amigos, comentavam ruidosamente os casos mais engraçados no campus, faziam pilhérias dos professores, namoravam descontraidamente nos extensos gramados. Os breves momentos de descontração o levavam a esquecer o ritmo alucinante do trabalho, noite a dentro, lavando pratos e pesadas panelas no restaurante da Associação Bávara. Ao final da jornada, o frio cortante da madrugada penetrava os ossos, enrijeciam as mãos cuja pele se soltava, pelo contato prolongado com substâncias químicas e a temperatura elevada da água. Dor maior vinha da alma, por pouco ser, sendo estrangeiro, “Gasterarbeiter”, estigma reafirmado em cada gesto, cada expressão, cada olhar de menosprezo e rejeição.
Depois de muitos anos, ainda amarga a condição de viver à margem. A arte o aprisionou no casulo de fios invisíveis, inferno dantesco de cabeças ceifadas, alter ego flutuando no vermelho iluminado pela convulsão das chamas no horizonte, implodindo dentro de si, espetáculo mamulengo de miríade de cores e sonhos sequestrados, anseio e amargor pelo corpo e abraço que nunca serão seus, melancolia da luz crepuscular resvalando o contorno da paisagem e confundindo o olhar, tremular de estrelas insurgentes ao betume da escuridão que obstrui vasos sanguíneos e sufoca o coração. No desterro das montanhas do Sul de Minas, consumidas pelo langor das noites e bafejadas pela paralisia dos dias, continua sendo estrangeiro.