“Debaixo dos lençóis, sonha acordado. Deixa-se levar pelo mundo etéreo, onde as imagens surgem do nada e se recostam nos cantos da memória, como se ali buscassem refúgio. Ela repousa na cama de cabeceira e pés torneados, sobre a colcha azul-escuro salpicada de flores brancas. Seus olhos movem-se sob as pálpebras fechadas. Está levemente maquiada e seus cabelos pesados esparramam-se sobre o antebraço onde descansa a cabeça. O colar de pérolas contrasta com o vinho-ocre do vestido cinturado. No pé da cama, foram deixados uma maçã e brinquedos, uma boneca com vestido de renda e véu branco, ao lado do tucano de feltro.
Aproxima-se para ver mais de perto a imagem, que parece uma pintura. Percebe que dos pés da mulher adormecida brotam ramos de trepadeira que se espraiam pela cama, até atingirem os brinquedos, acariciando-os. De sua densa cabeleira surgem outros ramos da hera, espalhando-se em direções diversas. Um deles rompe o marco da parede branca e atravessa o azul intenso do firmamento que paira, indecifrável, sobre a imagem no primeiro plano. O delicado ramo continua a escalada, até penetrar a exuberante camada de flores multicoloridas, de diversas formas e tamanhos miúdos, que separa o céu em duas partes. Continua subindo até formar um delicado arco no céu acima, de onde pende a figura do enorme tucano segurando em suas garras a noiva entristecida, que retém nas mãos uma maçã vermelha. Seu véu rendado esvoaça pelo imenso espaço azul e quase resvala, abaixo, o campo de flores embriagadas de luz”.
A descrição acima é parte de um dos contos que publiquei recentemente. É como se o quadro ocupasse um lugar na dimensão onírica do sonho, ao mesmo tempo em que retrata um sonho. Em outras palavras, nos faz sonhar. Este é o primeiro ponto que gostaria de ressaltar ao apresentar no Blog mais uma obra de Sgreccia, nome artístico de meu irmão Vicente. Ninguém fica indiferente a ela. Quando a levei para ser emoldurada, há quase quarenta e cinco anos, em Belo Horizonte, aquela que era conhecida como uma das melhores profissionais da cidade se encantou. Disse que há tempos tinha uma moldura à espera de uma obra como essa. Quando ficou pronta, me impactou, era toda branca, realçando a beleza das imagens coloridas na tela.
O quadro foi realizado em 1977, numa temporada de férias de Vicente no Brasil, nos tempos em que morava na Alemanha. Fiquei tão apaixonado pelo trabalho que ganhei de presente de aniversário, num gesto extremamente generoso, pois sabíamos do valor comercial da obra. Eu a carrego em todas as minhas andanças e mudanças. Ocupa um lugar de destaque onde moro, ao lado de outras obras de Sgreccia.
Para além da descrição feita, impressiona a técnica apurada ao reproduzir, com realismo, as imagens. Distingue-se, no entanto, das obras que reconstroem o real como uma fotografia. Diferencia-se também das obras chamadas “primitivas”, ou naif, de cuja iconografia se aproxima, porque nada tem de ingênuo. Expressa uma dimensão do real, nem um pouco simples, a do inconsciente. Interroga, faz a imaginação voar, desperta o pensamento crítico. Não seria uma leitura da condição feminina, onde o paraíso – o canteiro multicolorido de flores que separa o céu em duas partes – transforma-se no mais cruel aprisionamento – a noiva nas garras do tucano? Sonho ou pesadelo, revelado pela miríade de cores e plasticidade comovente das imagens?