Washington, DC
As lembranças da primeira viagem à capital dos Estados Unidos, em 1994, época em que participava de um programa promovido pela Fundação Fulbright para doutorandos, foram registradas numa carta para Ana, amiga e professora da UFMG. Relendo uma cópia, tantos anos depois, ainda me impressiono com a riqueza de detalhes que já se haviam apagado da memória. Voltei a Washington alguns anos depois e percorri quase que os mesmos caminhos. Essa segunda experiência será resgatada na seção de viagens.
OA descrição feita na carta remete a experiências que valem a pena lembrar, nesta parte do Blog:
“ Ithaca, 19 de novembro de 1994
Querida Ana
Demorei para te escrever, esperando que algo de novo acontecesse para mudar um pouco o ritmo de vida provinciano que acaba tomando conta de Ithaca no outono. A fase mais interessante de mutação da natureza – o espetáculo da mudança de cor e queda das folhas das árvores – já passou. A paisagem está feia, os dias predominantemente nublados e cinzentos. Tudo parece se preparar para uma transformação mais profunda, o inverno e a neve que estão por vir. Estou à espera.
Novidade mesmo foram as duas semanas que passei em Washington, a partir do dia 1º de novembro. Participei de um workshop que reuniu fellows de mais de 100 países. Aproveitei a oportunidade para fazer contatos profissionais e, nas folgas de tempo, conhecer a cidade.
Saí na manhã do dia 1° num voo Ithaca-Newark, onde fiz escala. O trecho Newark-Washington transformou-se num quase pesadelo. Fomos pegos por uma forte tempestade. O avião esteve, em vários momentos, sob forte impacto do vento e de trovoadas. Os passageiros mais atentos trocavam olhares de inquietação e ansiedade. Dois dias antes, acontecera o segundo acidente aéreo em condições semelhantes. Ao meu lado, viajava um empresário de Minneapolis. Conversamos um pouco para aliviar a tensão. Fomos comunicados pelo piloto de que não havia condições de pouso na capital. Voltamos a Newark. Alivio ao pousar em terra firme. Todos os voos do dia foram cancelados. Foi uma novela para recuperar a bagagem. Alternativa para chegar a Washington: trem. Chegamos às 22h, nove horas além do horário previsto para a viagem de avião.
Nos primeiros dias, fiquei num pequeno hotel, nas imediações da Universidade George Washington. Senti afinidade com o bairro. A cidade é uma mistura de modernidade e tradição: amplas avenidas e bulevares facilitando o trânsito, dando ideia de espaço aberto e de liberdade; edifícios de estilo arrojado convivendo com prédios mais antigos, todos com menos de dez andares; o charme discreto das pessoas que vão e voltam do trabalho; o campus da universidade mesclando-se com a cidade, trazendo-lhe o viço da juventude internacional, multiétnica; restaurantes e lojas elegantes, bares descolados nas calçadas ou no interior de shopping centers; ruas tranquilas onde os que se conhecem se cumprimentam, caminhando descontraidamente. Essa foi a impressão dos primeiros dias e dessa área da cidade.
Fiz contatos profissionais e muitas andanças. Tive uma conversa proveitosa com a diretora de formação da AFL-CIO. Visitei o George Meany Center, espaço de formação sindical situada num belo campus, onde conversei longamente com seu diretor e com o responsável por programas de cooperação com a América Latina. Encontrei-me também com um dirigente que havia visitado a 7 de Outubro com um grupo de sindicalistas norte-americanos quando eu estava numa viagem à Itália.
Circulei bastante, basicamente de metrô, bonito, eficiente, limpo. Articula, através de uma malha de diferentes linhas-cores os diversos bairros da cidade. Todas as informações são muito claras.
Aproveitei o final de semana para visitar os museus que se concentram ao longo do National Mall, esplanada entre a colina do Capitólio e o Lincoln Memorial. Foi uma verdadeira viagem no espaço e no tempo. Dinossauros, répteis, monstros marinhos, a evolução das espécies, a reprodução de cenas cotidianas de diferentes culturas, tudo isso faz a festa da criançada e de adultos no Museu de História Natural.
Belos exemplares de cavalos em porcelana e cerâmica chinesa, delicados pássaros esculpidos em jade, dividem espaço com deuses e demônios no Pantheon de culturas orientais. É o museu de arte asiática – Arthur M. Sackler Gallery. Do outro lado do jardim interno do Castelo, principal prédio da Fundação Smithonian, que mantém todos esses museus, ficam as máscaras, objetos e estátuas africanas – o National Museum of African Art. Algumas peças, esculpidas em madeira ou marfim, são de rara beleza.
Mas a emoção bateu mais forte mesmo foi na National Galley of Art. Os impressionistas – Gaugin, Cézanne, Monet, Renoir, Manet, Lautrec – estão presentes, cada um com um conjunto significativo de obras. Do predileto Van Gogh, apenas três, uma delas muito expressiva, La Mousmé, de 1888. Goya, El Greco, Murilo, Velásquez também se destacam. Um belíssimo Da Vinci – Ginevra di Benti – chama a atenção. Há quatro ou cinco Raphael e uma expressiva coleção de pré-renascentistas. Por tudo isso e por tudo que deixei de falar, a National Gallery é considerada o segundo museu mais importante no gênero dos Estados Unidos, só perdendo para o Metropolitan de NY.
As opções continuam, as mais variadas. O East Building da National Gallery, dedicado à arte moderna é, em si, uma obra de arte. Tapeçarias de Miró, as famosas latas de sopa de Andy Warhol, a pop-art de Lichtenstein, filme sobre os autores da geração beat… Num dos nichos da Rotunda – amplo hall que separa as principais alas do West Building – o jovem Dionisius nos oferece um cacho de uvas. (Ampelo redivivo na seiva que o deus oferece aos homens na forma de vinho, lembra?). A estátua em bronze é puro magnetismo e sedução.
Outra parte interessante do acervo é a coleção de moedas raras da Antiguidade. Foi um momento de emoção. Alexandre está presente num exemplar de prata, com traços belos e fortes. Sua imagem é tensa, carregada de vigor e energia. A efígie de Adriano, cunhada em ouro, revela maturidade e certa imponência. Antonius Pius, que o sucedeu no Império, atrai pela beleza, equilíbrio de traços e serenidade.
Os principais monumentos históricos – os memoriais onde os pais da nação são venerados – têm a forma de templos gregos. A pretensão incomoda. A concepção desses memoriais está relacionada ao projeto original de democracia norte-americana vislumbrada por seus fundadores. As estátuas deles nesses espaços remetem à vigilância permanente quanto à realização desse sonho. O memorial dedicado a Lincoln é solene e austero. Sentado numa cadeira, parece velar pela Polis, com autoridade e, ao mesmo tempo, descontração e naturalidade. A referência à estátua de Zeus em Olímpia é evidente. A estátua de George Washington, retirada do Capitólio e preservada num desses museus, é outra tentativa de reproduzir a mesma ideia (falta de imaginação). Desta vez, o herói americano não passa de uma infeliz e grotesca caricatura do deus grego…
O workshop começou no domingo, depois de uma recepção formal no sábado à noite. Ficamos hospedados no Mayflower Hotel, um dos mais tradicionais (e mais caros) da cidade. A turma de brasileiros, cinco no total, era muito interessante e animada. À tarde, fizemos um tour pela cidade. Passamos por bairros residenciais e pela área onde se concentram as embaixadas. Em alguns bairros não havia um único branco, apenas negros, 30% deles abaixo da linha da pobreza. Aqui o sonho americano mostrou sua verdadeira cara.
Visitamos o Capitólio, onde tivemos uma conversa com representantes do Partido Democrata, que acabavam de perder as eleições dos representantes no Congresso. O clima era de desapontamento e as expectativas sombrias. Estivemos no plenário onde se dão as votações. Sentei-me no lado esquerdo, ocupado pelos Democratas, tentando relembrar a palestra anterior sobre as nuances existentes no interior dos dois partidos e as diferenças entre eles. Deu um certo arrepio ao pensar no poder dos Republicanos, assumindo depois de quarenta anos o controle das duas Casas. Alguns comentaristas chegaram a falar no retorno ao Marchartismo.
Estive com um pequeno grupo na Biblioteca do Congresso. O acervo é inimaginável. A principal sala de leitura fica sob a cúpula do edifício. A imponência é semelhante à do Duomo de Florença. O prédio, no entanto, tem um estilo eclético.
Assisti ao filme Lamarca no Festival de Cinema no Kennedy Center. Teve debate com a diretora, depois da apresentação. O público era majoritariamente brasileiro.
Na sexta à tarde, voltei à área dos museus. Desta vez, passei a maior parte do tempo no Hirshhorn Museum. Havia uma mostra de artistas contemporâneos, muy doidos! Numa sala vazia, uma voz desesperada gritava: Get out of this room! Noutras, a referência à tortura na América Latina: no centro de um triângulo formado por barras de aço frágeis animais, suspensos pelo pescoço e contorcidos pela dor, são arrastados pelo ponteiro de um imenso relógio em movimento sem fim. São cenas pungentes que denunciam a predestinação à violência como um moto-perpétuo. Será?
Voltando para casa, sobrevoamos regiões densamente povoadas de Maryland e New Jersey. Fizemos escala em Nova York, cujo centro estava coberto por uma imensa nuvem de poluição. Chegando a Ithaca, tivemos uma bela visão da Cornell. Home again! ”
Imagino você vivendo estes momentos maravilhosos.
Com a publicação do seu relato , você nos dá a oportunidade de participarmos desta sua experiência maravilhosa.
Lucia, fico feliz de ver você “viajando” comigo!
Imagino você vivendo estes momentos maravilhosos.. adorei.