O presente de aniversário me foi entregue antecipadamente, de forma generosa, pelo irmão e artista plástico Vicente. Nada mais e nada menos que uma obra de seu acervo pessoal, uma gravura de Rubem Valentin, de 1990, número 143 de uma série de 160 cópias. No momento, não soube como agradecer direito, tamanha a emoção. Permanece sobre a queijeira antiga, transformada em aparador, cercada de outras obras de arte, tendo sempre por perto uma planta que evoque algo relacionado às imagens de Valetin, onde o sagrado e mítico são transformados em signos geométricos de significado universal.
Aprendi a apreciar seus trabalhos desde a memorável exposição Brasil+500, ou a Mostra do Redescobrimento, por ocasião da comemoração dos quinhentos anos do país, no Ibirapuera. Revi várias de suas obras, sempre com a mesma admiração, na Pinacoteca e no Museu Afro-Brasileiro, ambos em São Paulo, e no Museu de Arte Contemporânea de Salvador. Como registrei em outra matéria publicada no Blog, a singularidade de seu trabalho está em celebrar a cultura ancestral do negro, sem fazer concessão ao exótico, a formas ou cores de mero apelo popular. Fez da geometria um instrumento, buscou e traduziu em suas obras o que chamou de “a luz da luz”.
O que meus olhos contemplam é um quadro composto em dois planos. Acima, a imagem estilizada do negro, ladeado por dois soldados, de aspereza e força bruta pontiaguda, solenes em sua autoridade e vigilância. A cabeça circundada por uma auréola sugere estarmos diante de um personagem que se comunica com o sagrado. Cercado pelo verde das matas, seus pés tocam as águas dos rios e oceanos, suspensos pelo esforço sobrenatural daquele que liga os mundos entre a terra e o céu.
Quem poderá ser? Oxóssi, o orixá das matas e dos segredos da cura, irmão de Ogum? Senhor de Keto, Congobira, Azca, Mutacolombo? O soldado romano com o torso trespassado de flechas, o São Sebastião do rio de tantos janeiros, o protetor da baía cercada de morros pontiagudos de pedra e floresta impenetrável? O negro amarrado ao tronco, na imagem imortalizada por Debret? Ou o escravo suspenso pela costela, na cena ainda mais revoltante registrada por William Blake? Ou todos eles num só?