A expressão – batismo de fogo – talvez traduza a experiência que mudou o rumo de minha vida, na segunda metade dos anos setenta. Na época, fazia o mestrado em Antropologia na PUC-SP, onde era o mais jovem professor a lecionar no Ciclo Básico. Estava ligado a um grupo de pesquisadores que se reuniam regularmente na sede da Associação de Sociólogos do Estado de São Paulo para discutir a questão agrária, tema complicado naqueles anos bicudos. O grupo cresceu, passou a promover encontros anuais sob a coordenação de Leonilde Medeiros, docente na Unesp -Botucatu, e subdividiu-se em grupos temáticos. Integrei-me ao pequeno grupo que estudava movimentos sociais. Começava a amadurecer minha primeira proposta de pesquisa.
Ao apresentar o projeto para a Fapesp, fui aconselhado por minha orientadora, Professora Carmen Junqueira, a delimitar o objeto de investigação, focando-o nas relações de trabalho na região canavieira da Mata Sul pernambucana. “Você terá que apresentar relatórios semestrais à instituição. A pesquisa de campo sobre relações de trabalho abrirá o caminho para o tema que te interessa, o que aconteceu por lá depois que as Ligas Camponesas foram massacradas pela ditadura”, ela me dizia. Conseguida a bolsa da prestigiada instituição de amparo à pesquisa, parti para o trabalho de campo, munido do entusiasmo do jovem que se testaria na empreitada de desvelar o objeto de investigação – o mundo dos trabalhadores canavieiros e suas lutas – “a partir de seu próprio olhar”, expressão usada para se referir ao ofício do antropólogo, enxergar o mundo do outro, com os olhos do outro.
Fui recebido na sede da FETAPE – Federação dos Trabalhadores da Agricultura de Pernambuco – pelo advogado, Dr. Mozart, que logo foi me interrogando sobre meu interesse em pesquisar sindicatos, apesar das cartas de apresentação. Sabia ser o momento delicado e todo cuidado era pouco. Entre uma pergunta e outra, abriu a gaveta da mesa de trabalho e deixou antever o revólver. O cenho carregado se descontraiu quando mencionei pesquisadores do Museu Nacional e comentei seus trabalhos. Ganhada sua confiança, começou a falar sobre a ação articulada de três sindicatos da Mata Sul – Barreiros, Rio Formoso e São José da Coroa Grande – no enfrentamento das manobras da Usina Central Barreiros, com terras e canaviais nos três municípios, para explorar o trabalho dos canavieiros e dificultar a ação sindical. Comprometeu-se a informar os sindicatos sobre minha pesquisa.
Amaro, presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Barreiros, me acolheu com generosidade. Contou-me em detalhes como a usina deslocava trabalhadores para áreas de trabalho nos municípios vizinhos para impedir o sindicato de agir, considerando os limites de sua base de representação. Em outras palavras, o trabalhador lesado ficava impossibilitado de fazer reclamação trabalhista, através do sindicato de origem, sobre fato ocorrido em municípios vizinhos. A solução foi os três sindicatos entrarem com ação coletiva de abrangência intermunicipal contra a empresa, processo que envolveu um número significativo de trabalhadores. Mal sabia eu, estavam sendo criadas as condições para a FETAPE usar aquela experiência para organizar as primeiras campanhas salariais no pós-64, envolvendo diversos sindicatos e abrangendo um número considerável de municípios.
Amaro também se dispôs a me apresentar trabalhadores na sede do sindicato para eu fazer entrevistas. Tudo preparado e fui pego pelo inesperado: o trabalhador não compreendia minhas perguntas, nem eu suas respostas. Diante da situação constrangedora, Amaro veio em meu socorro. Passou a “traduzir” minhas perguntas e as respostas do trabalhador. Fiz uma série de entrevistas e me senti ridículo. A experiência chocante comprovou a necessidade de recorrer a outras técnicas de pesquisa de campo, como a observação participante, para conseguir compreender e interpretar não só a linguagem dos trabalhadores, mas seu próprio mundo.
Voltando a Recife, consegui contatos com membros da Pastoral Rural estruturada sob o manto de proteção do Arcebispo de Olinda e Recife, D. Helder Câmara. Um dos padres de sua confiança me levou para assistir a uma de suas missas, celebrada às seis horas da manhã. Na época, Padre Servat, bretão de origem, coordenava a ACR – Ação Cristã Rural, uma variante de pastoral como a JOC e a JUC, atuantes na região no pré-64. Convidou-me a participar de um dos encontros regionais do movimento, que estava por acontecer em Olinda. Foi quando conheci dois “animadores” do município de Águas Pretas, onde faziam oposição sindical. Combinei de visitá-los no meu retorno a Pernambuco, no próximo semestre.
Os meses seguintes foram dedicados a organizar as informações, fazer novas leituras, traçar hipóteses de pesquisa, elaborar o primeiro relatório para a Fapesp e me preparar para a nova etapa de trabalho, decidido a morar uns tempos com os próprios trabalhadores. Ao voltar a Recife, visitei pessoas conhecidas, fiz novos contatos, consegui acesso a arquivos do Padre Mello, no Cabo. Conheci Lucia, ativista que trabalhara com Padre Crespo. Ela me deu sua versão das disputas relacionadas à criação da Contag, no conturbado período que precedeu ao golpe militar de 64, e me cedeu cópias de documentos mantidos no arquivo sob sua responsabilidade.
Dias depois, estava chegando de ônibus, bagagem a tiracolo, a Águas Pretas. Procurei pelo endereço de um dos animadores que conhecera no encontro da ACR. Começou aí meu batismo de fogo, a experiência de conviver com os próprios trabalhadores e de ser aceito por eles. Tentei manter a naturalidade diante da pobreza a minha volta, ao ser recebido pela esposa do Seu José, de olhos encovados e ar preocupado. Filhos pequenos e quase sem roupas brincavam pelos cômodos do casebre desprovido do mínimo, onde a vida parecia testar o limite da carência. Me ofereceu a única cama existente para descansar, enquanto preparava algo para eu comer. Na mesa posta, havia um único prato servido de uma porção de arroz, fatias de inhame e dois peixinhos fritos, pescados no ribeirão que passava no fundo do quintal. As crianças se acocoraram ao redor, olhando para mim. Não consegui comer, além das primeiras garfadas. Reparti com eles.
No final da tarde, Seu Zé chegou do trabalho. Me levou para passar a noite na casa do Pedro, o filho mais velho, noutro bairro. Fui apresentado como “evangelhizador” que havia chegado de São Paulo para passar uns tempos com eles. Me olharam com curiosidade. Responderam mais do que perguntaram. Percebi que estava chegando a hora de se recolherem, a jornada do dia seguinte começaria cedo. Pedro me mostrou o cômodo separado da pequena sala por uma mureta baixa, onde estava a cama, protegida por um mosquiteiro de filó. As pessoas se retiraram em silêncio. Tirei os sapatos e a camisa e me deitei sobre o lençol. Para minha surpresa, os moradores voltaram pouco depois para observar como eu dormia.
Os dias seguiram a mesma rotina. A hospedeira que havia sido pega de surpresa ficou mais à vontade quando me ofereci para fazer a feira. Com o tempo, virei compadre, padrinho do pequeno Leandro, sem o ter batizado, e pagava a maior parte das compras. As conversas tornaram-se mais descontraídas. Observavam minhas sandálias e diziam, admirados, que os dedos dos meus pés eram rosados como camarão. À noite, participava das reuniões, os “encontros de evangelhização”. Diziam que eu não parecia paulista. Demorei para compreender. Paulista era o termo usado para se referir a moradores da cidade que voltavam depois de uma temporada em São Paulo, de óculos escuros, relógio de pulso e um monte de penduricalhos, ostentando posse. Ouvi suas histórias. Prestei atenção nas conversas, especialmente aquelas relacionadas ao trabalho e à oposição que faziam ao sindicato. Puxei prosa, pedi explicação, aprendi muito.
No domingo que antecedeu minha volta para Recife, consegui marcar conversa com a senhora que ficara conhecida por se recusar a “tirar a tarefa” acima de suas forças. Seu exemplo motivara outras mulheres a fazerem o mesmo. Fui recebido na casinha no final da rua. Me ofereceu uma cadeira em frente à mesa, improvisada de caixotes, no meio da sala. Sentou-se do outro lado. Sobre a mesinha coberta por uma tolha alvejada, branca de doer a vista, havia colocado uma garrafa de refrigerante e um copo. Me pareceu ter custado um bocado de suas economias. Não ousei tocar. Pedi que me contasse sua história.
Aos poucos a mulher franzina foi se agigantando ao falar de sua vida, do trabalho e da indignação que a levara a se insubordinar e não aceitar a tarefa imposta: “Mas a gente achou que não dava para a gente. Eu nunca cortei cana. Eu sei semear, eu sei limpar, sei biscaiar, sei embolar mato, mas para cortar cana, aí eu não corto. Por isso nois passou um mês parada, eu e ela. Aí eu saí, abandonei a ficha”. Nunca me esqueço da expressão usada ao se referir ao trabalho penoso: “Chega a noite, não durmo. A alma resmunga de cansaço”.
Aproveitei os dias na capital para retribuir a atenção recebida na ACR. Propus ao Servat uma nova cara para o Grito do Nordeste, jornal da entidade reproduzido em mimeógrafo a álcool. No início, relutou. O pessoal já estava acostumado com o jornal daquele jeito, disse. Insisti, até conseguir sua aprovação para uma edição feita em gráfica. Trabalhei com afinco no projeto. Aproveitei para escrever uma coluna sobre as condições de trabalho no eito da cana. Fiz a matéria como se fosse um canavieiro descrevendo a exploração a que era submetido, usando seu próprio linguajar. A nova versão do jornal foi sucesso de público e crítica. No avião, ao reler a matéria, achei que havia passado no teste de enxergar o mundo dos canavieiros “com seus próprios olhos”. Anos mais tarde, depois de defender a dissertação de mestrado, decidi abandonar a carreira acadêmica para assessorar o movimento sindical.