“O acordão de Temer não impediu o golpe, que já estava derrotado. Mas pode ter melado o impeachment. Temer interrompeu o jogo quando era a vez da democracia jogar. A turbulência que Temer poupou ao mercado não foi a turbulência do fim da democracia, foi a turbulência da reação da democracia”. Celso Rocha de
Os dias que se seguiram ao 7 de setembro foram dominados pelas seguintes questões: a mediação de Temer e o acordo para solucionar a crise política, que selou a rendição de Bolsonaro; a reação dos poderes instituídos e da sociedade, aliviada com o golpe frustrado; a repercussão nas bases bolsonaristas e nos partidos; o significado do episódio – o putsch que não aconteceu – e o que acabou revelando sobre a frágil democracia brasileira.
Segundo o analista político citado no quadro acima, golpe deu errado. “A ideia da manifestação era convencer militares e PMs de que um golpe seria popular mesmo partindo de um governo com 60% de rejeição.” Não convenceu. A aglomeração na Paulista foi significativa, mas ficou longe dos esperados dois milhões de manifestantes. Em Brasília, Bolsonaro não deu a palavra de ordem para a invasão e ocupação do Supremo e do Congresso, para surpresa da galera verde amarela. Em São Paulo, horas depois, fez uma fala truncada, em que atacou novamente Moraes e disse que não acataria decisões da justiça. O discurso, recebido com espanto e desencanto por seus apoiadores, foi motivo suficiente para engrossar as fileiras a favor do pedido de impeachment.
No dia seguinte, pressionado de todos os lados, pediu que comunicassem aos caminhoneiros que insistiam em cumprir o roteiro original que desocupassem a Esplanada e divulgou um vídeo, pedindo que desbloqueassem as rodovias. Para surpresa geral, especialmente dos generais e políticos mais próximos, acostumados a aconselhar o presidente, Temer atendeu a seu pedido e chegou com uma carta já redigida. No documento, desdiz o que fizera, afirma o que ninguém acredita: “Nunca tive nenhuma intenção de agredir quaisquer dos Poderes. A harmonia entre eles não é vontade minha, mas determinação constitucional que todos, sem exceção, devem respeitar” – e assina a rendição.
Chamou a atenção a tibieza das declarações dos representantes dos poderes instituídos, com exceção do ministro Barroso, presidente do TSE. Seu pronunciamento no TSE, preciso e contundente, empalideceu a fala morna de Fux, feita na véspera.
Fux fez uma defesa republicana do Supremo, afirmou que o tribunal jamais será fechado e questionou a natureza das agressões feitas ao judiciário: “Ofender a honra dos ministros, incitar a população a propagar discursos de ódio contra a instituição do Supremo Tribunal Federal e incentivar o descumprimento de decisões judiciais são práticas antidemocráticas e ilícitas, intoleráveis, em respeito ao juramento constitucional que fizemos ao assumirmos uma cadeira nesta Corte”.
Barroso questionou as raízes do populismo e as manobras para encobrir seu fracasso: “O populismo vive de arrumar inimigos para justificar o seu fiasco. Pode ser o comunismo, a imprensa ou os tribunais”. Chamou a atenção para a situação constrangedora a que fomos levados, ao afirmar que somos “ vítimas de chacota e de desprezo mundial”. Afirmou ser uma covardia atacar a Justiça Eleitoral “por falta de coragem de atacar o Congresso Nacional, que é quem decide a matéria”, referindo-se ao voto impresso. Por último, arrematou: “Não podemos permitir a destruição das instituições para encobrir o fracasso econômico, social e moral que estamos vivendo”.
Depois de ter pedido, no dia das manifestações, “absoluta defesa do Estado Democrático de Direito”, Pacheco cancelou, na segunda (8) as sessões do Senado, em reação aos discursos de véspera de Bolsonaro. Manteve o tom conciliatório, ao reafirmar que deveríamos estar focados na busca de solução para os graves problemas da sociedade brasileira, que “não está nos arroubos antidemocráticos”.
Lira foi questionando pelo silêncio. Finalmente fez um pronunciamento na segunda. Criticou a ruptura do acordo feito com o presidente, por ocasião da votação do voto impresso na Câmara, ao afirmar: “Não posso admitir questionamentos sobre decisões tomadas e superadas como a do voto impresso. Uma vez definida, vira-se a página”. Questionou as frequentes crises criadas por Bolsonaro: “É hora de dar um basta a essa escalada em um infinito looping negativo. Bravatas em redes sociais, vídeos e um eterno palanque deixaram de ser um elemento virtual e passaram a impactar o Brasil de verdade”. Mas não disse uma palavra sobre o impeachment.
A Bolsa de Valores, que havia despencado, recuperou-se. Oscilação semelhante ocorreu com o dólar. Bolsonaro virou motivo de chacota nas redes sociais. Suas bases ficaram divididas. Enquanto parte continuou esperançosa, com atitudes que poderiam ser tomadas por Jair Bolsonaro nos próximos dias – convocação do Conselho de Segurança – outros expressaram frustração com os discursos do mandatário e avaliaram que ele perdeu a chance de adotar medidas mais drásticas. Na apuração do IPD (índice de Popularidade Digital) levou outro tombo: na sexta (10) caíra para 37,1 pontos, a pior marca de Bolsonaro em 2021 (chegou a 81,8 pontos no início do ano). O núcleo mais duro da militância bolsonarista tenta juntar os cacos, explorando a fragilidade das manifestações do dia 12, convocadas por movimentos e partidos que defendem a terceira via.
A defesa do impeachment de Bolsonaro chegou a ganhar força com o pronunciamento de Kassab, ao afirmar: “Os discursos do presidente foram perigosos. Caso ele cumpra o que assumiu nas suas manifestações, cria condições pelo impeachment”. Voltou atrás, após afirmar que a carta de Bolsonaro afastava o risco. O PSDB colocou-se na oposição, mas não se posicionou pelo impedimento do presidente. O PT e o PDT, que buscam o impeachment há mais tempo, procuram ampliar o isolamento de Bolsonaro e disputam a direção do processo.
Colocado pano quente na fervura política, Lira não encontra motivo para apertar o botão amarelo. O centrão continua desfrutando das benesses do “toma lá, dá cá” e o próprio Lira mantém o controle do orçamento paralelo, descarregando verbas seletivamente nas emendas dos parlamentares a serem fortalecidos na disputa eleitoral de 2022. Partidos importantes do bloco já sinalizam o desembarque do governo no próximo ano. O centro (MDB, PSDB, PSD, DEM) enfrenta dificuldade para encontrar seu candidato à presidência e Kassab continua apostando na candidatura de Pacheco. No entanto, a palavra de ordem “Nem Bolsonaro, nem Lula” ainda está longe de pavimentar o caminho da chamada terceira via.
A mais recente crise política e seu desfecho revelam, mais uma vez, a natureza da democracia brasileira. “Temer interrompeu o jogo quando era a vez da democracia jogar. A turbulência que Temer poupou ao mercado não foi a turbulência do fim da democracia, foi a turbulência da reação da democracia”. Vista de longe, pela lente dos regimes democráticos consolidados, a democracia brasileira, em que pese a resistência de algumas instituições e de setores organizados da sociedade, é muito frágil. Nesses países, por muito menos do que se constata por aqui, lideranças políticas teriam sido obrigadas a renunciar, teriam sido julgadas e provavelmente estariam na cadeia.