Filhas do Vento
Inúmeras críticas já foram feitas ao filme, ressaltando o significado da obra que arrebatou a maior parte dos prêmios em Gramado em 2005. Meus comentários não tem essa pretensão. Quero apenas registrar alguns pontos, aqueles que tocam o coração.
Desde o sucesso em Gramado, imaginei despertaria ciúmes dos profissionais de cinema, de diretores e artistas, maioria branca, com maior acesso e controle da indústria cultural. Seja qual tenha sido a reação desse grupo, o importante é que Joel Zito trilhou um caminho de sucesso e de reconhecimento com uma obra tão diversa.
Voltando ao filme. Vários aspectos ainda me chamam a atenção. O primeiro deles é aquela paisagem do interior de Minas, essa Minas tão singular e diferente dos Gerais, que surgiu nas fímbrias na mineração e deixou lastros da cultura barroca, como igreja colonial no espaço verdejante do vilarejo que evoca o passado, as tradições. Vista pela câmera por detrás do Cruzeiro, como o olhar que a observa de cima para baixo e ao mesmo tempo revela a paisagem, essa apresentação exuberante do cenário, evoca Minas no sentido mais puro.
Cenas do local onde mora a família em torno da qual é tecida a narrativa, o interior da casa, a oficina onde são restauradas as bicicletas, o remanso onde corpos sensuais se banham e secam ao sol, a mesa onde se tomam refeições ao ar livre, o balanço, tudo isso reconstitui o local ancestral onde a felicidade é viver do pouco e do simples, com dignidade.
Uma vida tecida por relações ternas, sob o rigor da autoridade paterna e a sombra de um fato trágico.
Há uma tensão entre o desejo, que aflora como uma onda consumindo corpos, e a repressão que com o tempo se transforma na mais terna compreensão. A cena do pai falando dos casos da filha é comovente. Assim como é marcante aquela em que explica como nascem as filhas do vento.
A narrativa construída opõe realidade e sonho, desejo de uma vida diferente versus aparente acomodação ao real, a conquista da fama ao custo da solidão, o rancor que retesa sentimentos e a generosidade que alimenta a vida. Joel Zito traduz tudo isso numa linguagem contida, onde a tensão permanece submersa, raramente vindo à tona nos momentos mais dramáticos
Sob sua direção, o elenco tem um desempenho correto, mas os grandes momentos ele reservou para os grandes, Milton Gonçalves, Ruth de Souza e Léa Garcia.
Lea expressa no olhar o sofrimento do mundo, no corpo jovem e envelhecido a sensualidade dionisíaca, nos pequenos gestos a generosidade e o afeto que transbordam. Ela é o grande personagem.
Por tudo isso é mais um pouco, continua sendo um belo filme. Não envelheceu, passou incólume ao tempo, por tratar de questões humanas que transcendem.